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Emannuel
assistia impassível ao horrível sacrifício daquelas míseras criaturas, falou-lhe súplice:- Públio, basta de castigo para esses homens fracos e infelizes!...Não seria um excesso de rigor da nossa parte para com os nossos servosa causa de tão dolorosa punição dos deuses para conosco? Essesescravos não são também filhos de criaturas que muitos os amaram nestemundo? Na minha angústia materna, considero que ainda possuímosdireitos e recursos para manter junto de nós os filhinhos idolatrados; mas,como será torturante o martírio da mãe de um desventurado, e que o vêarrebatado de seus braços carinhosos para ser vendido por ignóbeismercadores de consciências humanas!...- Lívia, o sofrimento sugeriu-te singulares desvarios do coração -exclamou o senador, com serena energia.Como poderias pensar numa igualdade absurda de direitos, entre acidadã romana e a serva miserável? Não vês que entre ti e a mãe de umcativo existem consideráveis diferenças de sentimento?- Penso que te enganas - revidou a esposa, com intraduzívelamargura -, porque os próprios animais possuem os mais elevadosinstintos, em se tratando de maternidade...E ainda assim, querido, mesmo que eu não tivesse nenhuma razão,manda o raciocínio que examinemos a nossa posição de pais, paraconsiderarmos que ninguém, mais que nós próprios, é passível de culpapelo acontecido, visto que os filhos são um depósito sagrado dos deuses,que no-los confiam ao coração, impondo-nos como dever de cada minutoa multiplicação do carinho e vigilância necessários; se sofroamargamente, é por considerar o amor sublime que nos une aos filhos,sem poder atinar com a causa deste crime misterioso, sem poder imputaraos nossos servos a culpa desse tenebroso acontecimento...
Emannuel
...A voz de Lívia, porém, extinguia-se rapidamente. Um delíquio foi oresultado de suas palavras veementes, ao findar daquele dia de tantas etão amarguradas emoções. Amparada pelas mãos carinhosas e desveladasde Ana, a pobre senhora recolheu-se ao leito com febre alta. Quanto aPúblio, este, porque sentia que as verdades amargas da mulher lhe doíamfundo no coração, mandou cessar imediatamente o castigo, com alíviogeral, recolhendo-se ao gabinete para meditar a situação.Naquela mesma noite, recebeu a visita de Sulpício, que lhe veiotrazer o infrutífero resultado de suas indagações, na pista do pequenoMarcus.Ao despedir-se, exclamou o lictor, com grande surpresa de Públio,que lhe observara o tom enigmático das palavras:- Senador, eu não posso decifrar esse doloroso enigma dodesaparecimento do vosso filhinho, mas talvez possa orientar-vosnalguma pista segura, com as minhas observações pessoais, relativas aoassunto.- Mas, se tens semelhantes elementos, abre-te sem receios -exclamou Públio, com o máximo interesse.- Meus elementos de observação não são pontos de aclaramentopositivo, e, como existem alguns remédios que em vez de curarem umaferida produzem outras úlceras incuráveis, acho melhor adiar para amanhãà noite as minhas impressões individuais sobre os fatos.Gozando com a atitude de estupefação do interlocutorprofundamente impressionado com as suas insinuações criminosas,Sulpício rematou as despedidas, acrescentando intencionalmente:- Amanhã aqui estarei a estas mesmas horas e, se hoje não vossatisfaço ao desejo, aqui permanecendo até mais tarde, é que me esperamalguns afazeres no meu gabinete de trabalho, em vista de alguns pedidosde informações das nossas autoridades administrativas.
Emannuel
Dominado pelas expressões daquele enigma, Públio Lentulusapresentou-lhe as despedidas da noite, tendo forças para murmurar:- Então, até amanhã. Esperarei o cumprimento da tua promessa, demodo a aliviarem-se-me os receios do coração.Ficando a sós, o senador submergiu-se no mar profundo de suasinquietações e receios.Justamente quando contava regressar a Roma, eis que surge oinesperado, com piores características que a própria moléstia da filha,tantos anos suportada com serenidade e resignação, porque, agora, era orapto inexplicável de uma criança, envolvendo sérias questões damoralidade de sua casa, e a própria honra da família.No íntimo, sentia-se como um homem sem inimigos na Palestina,porquanto, com exceção do jovem Saul, filho de André, que, a seu ver,deveria estar tranqüilo no lar paterno, nunca humilhara os brios denenhum israelita, visto que a todos dispensava o máximo de sua pessoalatenção.Onde a causa daquele crime misterioso?Em suas reminiscências aflorou a palavra segura de FlamínioSeverus, quando lhe aconselhou muita prudência e valor individual, naPalestina, em razão de certos malfeitores que infestavam a região; mas,por outro lado, recordava o sonho simbólico e, com os olhos daimaginação, parecia lobrigar o vulto venerando daquele juiz austero eincorrupto, que lhe profetizara existência fértil de amarguras, dado o seudesprezo e indiferença pelas verdades salvadoras de Jesus de Nazaré.Trabalhado pela dor de angustiados pensamentos, debruçou-se àmesa de trabalho e deixou que o orgulho ferido chorasse copiosamente,considerando a sua impotência para conjurar as forças ocultas eimpiedosas que conspiravam contra a sua ventura, nos caminhosensombrados do seu doloroso destino.
Emannuel
...Alta noite, procurou desabafar o coração, junto à carinhosasolicitude da esposa, trocando ambos as suas lamentações e as suaslágrimas.- Públio - exclamava ela, com a ternura característica do seu coração-, procuremos reanimar nossas energias em favor de nós mesmos... Nemtudo está perdido!... Com os direitos que nos competem, podemosdeterminar todas as providências precisas, em busca do nosso anjinho.Adiaremos o regresso a Roma, indefinidamente, se tanto for necessário, eo resto os deuses farão por nós, reconhecendo nossa angústia eabnegação.O que não é justo é que nos entreguemos, irremediavelmente, aonosso desespero, inutilizando as derradeiras forças para a luta.A pobre senhora mobilizava os últimos recursos de suas energiasmaternas no proferir aquelas palavras de esperança e consolação. SabiaDeus, porém, das suas inenarráveis torturas íntimas, naqueles momentosangustiosos, e apenas o seu sentimento acrisolado, de renúncia e deamor, transformaria em forças as fragilidades da mulher, para poderconfortar o coração angustiado do esposo, em tão penosas conjunturas.- Sim, minha querida, farei tudo que estiver ao meu alcance paraesperar a providência dos deuses - disse o senador, mais ou menosreanimado em face do valor de que lhe dava ela testemunho.O dia seguinte decorreu nas mesmas expectativas angustiosas, comos mesmos movimentos incertos de buscas infrutíferas.À noite, segundo prometera, lá estava Sulpício Tarquinius esperandoo seu momento decisivo.Após o jantar, a que Lívia não pôde comparecer, em virtude do seuprofundo abatimento físico, Públio recebeu o lictor com toda a intimidade,ali mesmo no triclínio, em cujos leitos macios ambos se estiraram para apalestra costumeira.- Então, ainda ontem - exclamou o senador, dirigindo-se ao supostoamigo -, despertaste o meu
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paternal interesse, falando-me de tuas observações pessoais, que somentehoje me poderias transmitir...- Ah! sim - redargüiu o lictor, com fingida surpresa -, é bem verdadeque desejaria solicitar vossa atenção para as ocorrências misteriosasdestes últimos dias. Tendes algum inimigo, aqui na Palestina, interessadona continuidade de vossa permanência em regiões pouco adaptáveis aoshábitos de um patrício romano?- De modo algum - revidou o senador, eminentemente surpreendido.- Suponho encontrar-me num ambiente de amizades sinceras, em setratando das nossas autoridades administrativas, e acredito que ninguémhaja interessado na minha ausência de Roma. Ficaria muito satisfeito seesclarecesses melhor as tuas observações.- É que na Judeia, há alguns anos, houve um caso idêntico ao vosso.Conta-se que um dos antecessores do governador atual se deixouapaixonar perdidamente pela esposa de um patrício romano, que teve apouca sorte de se fixar em Jerusalém e, conquistados seus objetivos, tudofez por obstar o regresso de suas vítimas à sede do Império. E quandonotou que de nada valiam os empecilhos de sua autoridade, cometeu ocrime de seqüestrar um filhinho do casal, fazendo acompanhar o feito deoutras atrocidades, que ficaram impunes, dado o seu prestígio políticoperante o Senado.Públio ouviu essas observações com o pensamento em brasa.Em razão da sua intensidade emotiva, o sangue afluiu-lhe aocérebro, parecendo represar-se em largas correntes junto ao dique dastêmporas. Uma palidez de cera cobriu, em seguida, o seu rosto, numafacies cadavérica, sem poder definir a emoção que lhe assaltava o íntimo,em face de tais insinuações contra a sua dignidade pessoal e contra ashonrosas tradições da família.
Emannuel
...Num instante, reviveu todas as acusações de Fúlvia e, julgando osseus semelhantes pelo estalão dos próprios sentimentos, não podiaadmitir no espírito de Sulpício uma ferocidade de tal quilate.Enquanto mergulhava o pensamento em cismas atrozes, semresponder ao lictor, que o observava gozando o efeito de suas tenebrosasrevelações, prosseguiu o caluniador, com fingida humildade:- Bem reconheço o alcance de minhas palavras, para as quais, aliás,suplico a benevolência de vossa discrição, mas eu não abriria o coraçãoneste sentido, senão tocado pelo profundo interesse que a vossa amizadeconseguiu inspirar à minhalma dedicada e sincera. Francamente, nãodesejava constituir-me delator de quem quer que seja, perante o vossoespírito justo e generoso; todavia, passarei a narrar-vos o que vi com ospróprios olhos, de modo a orientar com mais segurança o esforço devossas pesquisas em busca do menino.E Sulpício Tarquinius, com a falsa modéstia de suas palavrasvenenosas, desfiou um rosário longo de calúnias, entremeando osargumentos de consecutivos goles de vinho, o que exaltava ainda mais afonte prodigiosa das suas fantasias.Contou ao seu interlocutor, que o ouvia atônito. pela coincidência desuas observações com as denúncias de Fúlvia, os mais íntimospormenores da cena do jardim em casa de Pilatos, e, em seguida, narrou oque observara na noite do rapto, salientando a coincidência da estada dogovernador em Nazaré.O senador ouvia-lhe a narrativa, ocultando, a muito custo, o seuespanto doloroso. A prevaricação da esposa, segundo aquela denúnciaespontânea, era um fato indubitável. Entretanto, ele queria acreditar ocontrário. Durante todo o tempo da vida conjugal, Lívia manifestara o maispronunciado retraimento dos ambientes sociais, vivendo tão somente paraele e para os filhinhos idolatrados. Era na sua palavra criteriosa e sinceraque o seu
Emannuel
espírito ia buscar as necessárias inspirações para o êxito nas lutas davida; mas aquela denúncia lhe atordoava o coração e anulava todos osfatores da antiga confiança. Além disso, penosas coincidências vinhamferir o seu raciocínio, despertando-lhe amarguradas suspeitas no íntimodalma.Não fôra ela que intercedera a favor dos escravos, no momento docastigo, súplice, como se a culpa do acontecido também lhe pesasse nocoração?Ainda na véspera, sugerira a continuidade da permanência de ambosna Palestina, demonstrando um valor pouco vulgar. Não seria isso umgesto de suposta consolação para o marido ultrajado, obedecendo aintuitos inconfessáveis?Um turbilhão de idéias antagônicas entrechocava-se no mar de suasmeditações dolorosas.Por outro lado, considerou, num relance, a sua posição de homemde Estado, as responsabilidades austeras que lhe competiam noorganismo social.O cargo proeminente, as severas obrigações a que se consagrara nomecanismo das relações de cada dia, o orgulho do nome e as tradições defamília, amalgamaram a energia precisa para o domínio das emoções domomento, e, escondendo o homem sentimental que era por natureza, paratão somente revelar o homem público, teve forças para exclamar:- Sulpício, agradeço o teu interesse, desde que as tuas palavrassejam reflexo da tua generosidade sincera, mas devo considerar, perante oconceito que acabas de expender sobre minha mulher, que não aceitonenhum argumento que lhe fira a dignidade e austera nobreza, predicadosesses que ninguém, mais que eu, deve conhecer.A entrevista no jardim de Pilatos, a que te referes, foi por mimautorizada, e as tuas observações na noite do rapto não estão bemdefinidas, dado o caráter positivo que se requer das nossas investigações.
Emannuel
...Assim, pois, agradeço-te a dedicação em meu favor, mas a tuaopinião abre entre nós, doravante, uma linha divisória que a minhaconfiança não mais ousará transpor.Ficas, assim, dispensado do serviço que te retinha junto de minhafamília, mesmo porque a perspectiva da minha volta a Roma sedesvaneceu com o desaparecimento do pequeno. Não poderemosregressar à sede do Império, enquanto não lograrmos o seureaparecimento ou a certeza dolorosa da sua morte.Deste modo, eu seria imprudente exigindo a continuidade dos teuspréstimos em Cafarnaum, sacrificando decisões de teus superioreshierárquicos, razão por que serás demitido de minha casa sem escândalosque prejudiquem a tua carreira profissional.Aguardarei o ensejo de me comunicar com o governador, a teurespeito, quando então serás desligado oficialmente do meu serviço, semnenhum prejuízo para o teu nome.Vês, assim, que, como homem de Estado, agradeço o teu interesse esei apreciar a tua dedicação, mas, como amigo, não me é mais possíveldepositar em ti o mesmo grau de confiança.O lictor, que não esperava semelhante resposta, ficou lívido no seuindisfarçável desapontamento, mas atreveu-se ainda a revidar,fingidamente:- Senhor senador, chegará o instante em que havereis de valorizar omeu zelo não só como servidor de vossa casa, mas também como amigodesvelado e sincero. E já que não tendes outra recompensa melhor que odesprezo injusto para corresponder ao meu impulso de amizade, é comprazer que me sinto desligado das obrigações que me prendiam junto devossa autoridade.Em seguida, Sulpício pronunciou algumas palavras de despedida, aque Públio respondeu secamente, atormentado pelos mais profundosdesgostos.
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No silêncio do seu gabinete, examinou o quanto de energia ascircunstâncias haviam exigido do seu coração em tão penosasconjunturas. Bem reconhecia que adotara para com o lictor a atitude maisconveniente e consentânea com a situação, mas, no íntimo, guardavaangustiosa incerteza, acerca da conduta de Lívia. Tudo conspirava contraela, tendendo a apresentá-la, ao seu coração de marido pundonoroso,como a personificação da falsa inocência.Naquele tempo, ainda não se vulgarizara no mundo o "orai e vigiai"dos ensinamentos eternamente doces do Cristo, e o senador, entregando-se quase que totalmente ao império das amargas emoções que oacabrunhavam, debruçou-se sobre numerosos rolos de pergaminho,entrando a chorar convulsivamente.
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117VIIAs pregações do TiberíadesAlguns dias haviam decorrido sobre os fatos que acabamos denarrar.Em Cafarnaum, não somente o cenário, mas também os atores,guardavam a mesma fisionomia.Compelido pela atitude irrevogável e enérgica do senador, SulpícioTarquinius regressara a Jerusalém, obedecendo às ordens de Pilatos que,por sua vez, recebera a notificação de Públio Lentulus, referente àdispensa do lictor.Não devemos esquecer que Públio permanecia na Palestina compoderes amplos, na qualidade de emissário de César e do Senado, e aquem todas as autoridades da província, inclusive o governador, eramobrigados a acatar com especial atenção e máximo respeito.O procurador da Judeia não se esquecera, portanto, de substituirSulpício, do melhor modo possível, buscando conhecer, com interesse, osmotivos do seu afastamento, assunto que o senador solucionou com omais largo espírito de superioridade, do ponto de vista político. Pilatoscoadjuvou, com a melhor boa vontade, o serviço de pesquisa, quanto
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ao paradeiro do pequeno Marcus, movimentando funcionários de suainteira confiança, e vindo pessoalmente a Cafarnaum, a fim de conhecer nasua intimidade as diligências efetuadas.O senador recebeu-lhe a visita com as mais altas mostras deconsideração e aceitou-lhe a cooperação, sinceramente confortado, emvista de os acontecimentos desmentirem, perante o seu foro íntimo, ascaluniosas acusações de que era vítima a esposa.Sua vida doméstica, porém, sofrera as mais profundas alterações.Não sabia mais viver aquelas horas de colóquio feliz com a esposa, daqual o separava um véu de dúvidas amargas e infinitas.Várias vezes tentou, improficuamente, readquirir a antiga confiançae a sua espontaneidade afetiva.Rugas de pesar vincaram-lhe então o semblante, ordinariamentealtivo e orgulhoso, esfumando-lhe os traços fisionômicos num nevoeiro depreocupações angustiosas.Todos os seus íntimos, inclusive a esposa, atribuíam aodesaparecimento do filhinho tão singular metamorfose.Nas horas habituais das refeições, notava-se-lhe o esforço paradesanuviar a fisionomia.Dirigia-se, então, à mulher ou respondia às suas perguntascarinhosas com monossílabos apressados, acentuando as palavras comlaconismo incompreensível.Sofrendo amargamente com aquela situação, Lívia apresentava-secada vez mais abatida, tentando em vão decifrar o motivo de tantasprovações e infortúnios.Muitas vezes procurou sondar o espírito de Públio, de modo a levar-lhe um pouco de carinho e consolação, mas ele evitava as expansõesafetuosas, com pretextos decisivos. Quase que lhe aparecia tão somenteno triclínio e, feita a refeição costumeira, retirava-se, abruptamente, para ogrande
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...salão do arquivo, onde passava todas as suas horas de inquietadorasmeditações.De Marcus, nenhuma notícia havia, que lhe proporcionasse a maisligeira sombra de esperança.Por uma formosa manhã da Galileia, vamos encontrar Lívia empalestra íntima com a serva dedicada e amiga fiel, a quem replica nestestermos, depois de carinhosamente inquirida, acerca do seu estado desaúde:- Sinto-me bem mal, minha boa Ana!... À noite, o coração bate-medescompassadamente e, hora a hora, vejo crescer-me no íntimo dolorosaimpressão de amargura. Não poderia bem definir meu estado, ainda que oquisesse... O desaparecimento do pequeno enche-me a alma de lúgubrespresságios, multiplicando o peso das minhas aflições maternas quandonão posso vislumbrar, nem de leve, a causa de tamanhos padecimentos...E agora é, sobretudo, o estado de Públio o que mais me acabrunha.Ele foi sempre um homem puro, leal e generoso; mas, de algum tempo aesta parte, noto-lhe singulares diferenças no temperamento, agravando-se-lhe os sintomas doentios com maior intensidade, após o incompreensíveldesaparecimento do nosso filhinho.A mim se me figura que ele vem sofrendo os mais fortes distúrbiossentimentais, com sérios prejuízos para a saúde...- Bem vejo, senhora, quanto sofreis! - aventou a serva carinhosa.Sei que sou uma criatura humilde e sem nenhum valor, mas pedirei a Deusque vos proteja incessantemente, restabelecendo a paz do vosso coração.- Criatura humilde e sem valor? - diz a pobre senhora, buscandodemonstrar-lhe o grau de sua estima sincera. - Não digas isso, mesmoporque não sou dessas almas que aferem o valor de cada um pelasposições que desfruta ou pelas honras que recebe.
Emannuel
Filha única de pais que me legaram considerável fortuna, cidadãromana, com as prerrogativas de mulher de um senador, vês quanto sofronos trabalhos amargos deste mundo.Os títulos que o berço me outorgou não conseguiram eliminar asprovações que o destino também me trouxe, com a mocidade e a fortunafácil.Reconhece, pois, que, sendo eu patrícia e tu uma serva, nãopossuímos um coração diverso, mas sim o melhor sentimento defraternidade, que nos abre a porta de uma compreensão carinhosa, a valerpor asilo suave nos dias tristes da vida.De mim para comigo, sempre supus, contrariamente à educaçãorecebida, que todas as criaturas são irmãs, filhas de uma origem comum,sem conseguir atinar com as linhas divisórias entre aqueles que possuemmuitos haveres e muitos títulos e os que nada possuem neste mundo alémdo coração, onde costumo localizar os valores de cada um, nesta vida.- Senhora - exclamou a serva, tocada da mais grata surpresa -,vossas palavras me comovem, não somente por partirem dos vossoslábios, dos quais me habituei a ouvir-vos sempre com carinho eveneração, mas também porque o profeta de Nazaré nos tem dito a mesmacoisa em suas prédicas.- Jesus?!... - perguntou Lívia, de olhos brilhantes, como se aquelareferência lhe lembrasse uma fonte de consolação, da qual se houvessemomentaneamente esquecido.- Sim, minha senhora, e por falar nele, porque não buscardes umpouco de conforto nas suas divinas palavras? Juro-vos que as suasexpressões, sábias e amorosas, vos consolariam no meio de todos ospesares, proporcionando-vos sensações de vida nova!... Se quisésseis, eupoderia conduzir-vos à casa de Simeão, discretamente, a fim dereceberdes o benefício de suas lições carinhosas. Receberíeis, assim, aalegria da sua bênção, sem vos
Emannuel
...expordes às críticas alheias, nutrindo o vosso coração dos seusluminosos ensinamentos.Lívia pensou intensamente naquele alvitre, que se lhe figuravaprovidência salvadora, respondendo, por fim:- Os sofrimentos da vida muitas vezes me têm dilacerado o coração,renovando os meus raciocínios acerca dos princípios que me foramensinados desde o berço, e é por isso que, acolhendo a tua idéia, acho demeu dever procurar a Jesus publicamente, como o fazem outras mulheresdestes lugaresEra minha intenção procurá-lo antes do nosso regresso a Roma,para lhe manifestar meu reconhecimento pela cura de Flávia, fato que medeixou profundamente impressionada, mas que não nos foi possívelcomentar, em razão da atitude hostil de meu marido; agora, novamentedesamparada, no estuar das minhas dores, recorrerei ao profeta para obterum lenitivo ao coração opresso e torturado.Mulher de um homem que, por força da sua carreira política, ocupaagora o mais alto cargo desta província, irei a Jesus como criaturadeserdada da sorte, em busca de amparo e consolação.- Senhora, e vosso esposo? - perguntou Ana, antevendo asconseqüências daquela atitude.- Procurarei cientificá-lo da minha resolução; mas, se Públioesquivar-se, ainda uma vez, à minha presença para um entendimento maisíntimo, irei mesmo sem ouvi-lo, com respeito ao assunto. Vestirei os trajeshumildes desta região de criaturas simples, irei a Cafarnaum, hospedando-me com os teus parentes, nas horas necessárias, e, no momento daspráticas, quero ouvir a palavra do Messias, de coração contrito e almacompadecida pelos infortúnios dos meus semelhantes...Sinto-me profundamente insulada nestes últimos dias e tenhonecessidade de conforto espiritual para o meu coração combalido nasprovas ásperas.
Emannuel
- Senhora, Deus abençoe os vossos bons propósitos. EmCafarnaum, os meus parentes são muito pobres e muito humildes, masvossa figura está ali no santuário da gratidão de todos, bastando umapalavra vossa para que se ponham à vossa disposição, como escravos.- Para mim não existe fortuna que se iguale a essa, da paz e dosentimento.Não procurarei o profeta para solicitar-lhe atenções especiais,porque basta a sua caridade, no caso de minha filha, hoje sadia e forte,graças à sua piedade de justo, mas tão somente para buscar conforto aomeu coração dilacerado.Pressinto que, em lhe ouvindo as exortações carinhosas e amigas,alcançarei energias novas para enfrentar as provações mais amargas erudes.Sei que ele me conhecerá nos trajes pobres da Galileia; todavia, nasua intuição divinatória, compreenderá que, dentro do peito da romana,pulsa um coração amargurado e infeliz.As duas combinaram, então, ir juntas à cidade, na tarde do primeirosábado.Embalde, procurou Lívia uma oportunidade para solicitar aambicionada permissão do marido, a favor da sua pretensão. Inúmerasvezes buscou, improficuamente, sondar o espírito de Públio, cuja frieza lheafugentava a coragem para a necessária consulta.Ela, porém, havia resolvido procurar o Mestre, de qualquer maneira.Abandonada numa região em que somente o marido podia compreendê-laintegralmente, dentro da sua esfera de educação, e rudemente provada nasfibras mais sensíveis da sua alma feminina, de esposa e mãe, a pobresenhora assim deliberou com pleno assentimento da sua consciênciahonesta e pura.Talhou uma roupa nova, de conformidade com os usos galileus, demaneira a não se fazer notada na multidão comum nas prédicas do lago, e,cientificando a Comênio da necessidade que tinha de
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...sair naquele dia, a fim de que o marido fosse avisado à hora do jantar,dirigiu-se, na data previamente determinada, pelos caminhos que jáconhecemos, em companhia da serva de confiança.Na residência humilde de pescadores, onde se abrigavam osfamiliares de Ana, Lívia sentiu-se envolvida em radiosas vibrações deserenidade amiga e doce. Era como se o seu coração desalentadoencontrasse uma claridade nova naquele ambiente de pobreza, dehumildade e ternura.A figura patriarcal do velho Simeão, da Samaria, porém, destacava-se a seus olhos entre todos os que a receberam com as mais elevadasdemonstrações de carinhosa bondade. Do seu olhar profundo e das cãsveneráveis emanavam as doces irradiações da maravilhosa simplicidadedo antigo povo hebreu, e a sua palavra, ungida de fé, sabia tocar oscorações nas cordas mais sensíveis, quando narrava as ações prodigiosasdo Messias de Nazaré.Lívia, acolhida por todos com simpatia franca, parecia devassar ummundo novo, até então desconhecido, na sua existência. Confortava-lhe,sobremaneira, a expressão de sinceridade e candura, daquela vida simplese humilde, sem atavios nem artifícios sociais, mas também sempreconceitos nem fingimentos perniciosos.À tardinha, confundida com os pobres e os doentes que iam receberas bênçãos do Senhor, vamos encontrá-la de coração aliviado e sereno,esperando o momento ditoso de ouvir do Mestre uma palavra de amor econsolação.O crepúsculo de um dia claro e quente emprestava um reflexo de luzdourada a todas as coisas e a todos os contornos suaves da paisagem.Encrespavam-se as águas mansas de Tiberíades ao sopro carinhoso dosfavônios da tarde, que se impregnavam do perfume das flores e dasárvores. Brisas frescas eliminavam o calor ambiente, espalhandosensações agradáveis de vida livre, no seio robusto e farto da Natureza.
Emannuel
Afinal, todos os olhares se dirigiam para um ponto escuro que sedesenhava no espelho cristalino das águas, muito ao longe, no horizonte.Era a barca de Simão, que trazia o Mestre para as dissertaçõescostumeiras.Um sorriso de ansiedade e de esperança clareou, então, todos aquelessemblantes que o aguardavam, no desconforto de seus sofrimentos.Lívia reparou aquela turba que, por sua vez, também lhe notara aestranha presença. Operários humildes, pescadores rudes, mãesnumerosas em cujos rostos macerados se podiam ler as histórias amargasdos mais incríveis padecimentos, criaturas da plebe anônima e sofredora,mulheres adúlteras, publicanos gozadores da vida, enfermosdesesperados e crianças numerosas, que traziam consigo os estigmas domais doloroso desamparo.Conservava-se Lívia ao lado do velho Simeão, cuja expressãofisionômica de firmeza e doçura inspirava o mais profundo respeito aosque se lhe aproximavam; e quantos lhe notavam o delicado perfil romano,enfiada na simplicidade do traje galileu, presumiam na sua figura algumajovem de Samaria da Judeia, que tivesse vindo igualmente de longe,atraída pela fama do Messias.A barca de Simão acostara brandamente à margem, ensejando a queo Mestre se dirigisse ao local costumeiro de suas lições divinas. Suafisionomia parecia transfigurada em resplendente beleza. Os cabelos,como de costume, caíam-lhe aos ombros, à moda dos nazarenos,esvoaçando levemente aos ósculos cariciosos dos ventos brandos datarde.A esposa do senador não pôde mais despregar os olhosdeslumbrados, daquela figura simples e maravilhosa.Começara o Mestre um sermão de beleza inconfundível e suaspalavras pareciam tocar os espíritos mais empedernidos, figurando-se queos ensinamentos ressoavam nas devesas de toda a Galileia,
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...ecoando pelo mundo inteiro, previamente modelados para caminhar nomundo com a própria eternidade."Bem-aventurados os humildes de espírito, porque a eles pertenceráo reino de meu Pai que está nos céus!..."Bem-aventurados os pacíficos, porque possuirão a Terra!..."Bem-aventurados os sedentos de justiça, porque serão saciados!..."Bem-aventurados os que sofrem e choram, porque serãoconsolados nas alegrias eternas do reino de Deus!..."E a sua palavra enérgica e branda disse da misericórdia do PaiCelestial; dos bens terrestres e celestes; do valor das inquietações eangústias humanas, acrescentando que viera ao mundo não para os maisricos e mais felizes, mas para consolar os mais pobres e deserdados dasorte.A assembléia heterogênea escutava-o embevecida nos seustransportes de esperança e gozo espiritual.Uma luz serena e caridosa parecia vir do Hebron, clarificando apaisagem em tonalidade de opalas e safiras eterizadas.A hora ia adiantada e alguns apóstolos do Senhor resolveram trazeralguns pães aos mais necessitados de alimento. Dois grandes cestos demerenda frugal foram trazidos, mas os ouvintes eram em demasianumerosos. Jesus, porém, abençoou-lhes o conteúdo e, como num suavemilagre, a escassa provisão foi partida em pequenos pedaços, que foramreligiosamente distribuídos por centenas de pessoas.Lívia recebeu igualmente a sua parte e, ao ingeri-la, sentiu um sabordiferente, como se houvera sorvido um remédio apto a lhe curar todos osmales da alma e do corpo, porque uma certa tranqüilidade lhe anestesiou ocoração flagelado e desiludido. Comovida até às lágrimas, viu que oMestre atendia, caridosamente, a numerosas mulheres, en-
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tre as quais muitas, segundo o conhecimento do povo de Cafarnaum, eramde vida dissoluta e criminosa.O velho Simeão quis também aproximar-se do Senhor, naquela horamemorável da sua passagem pelo planeta. Lívia acompanhou-oautomaticamente, e, em poucos minutos, achavam-se ambos diante doMestre, que os acolheu com o seu generoso e profundo sorriso.- Senhor - exclamou, respeitosamente, o ancião de Samaria -, quedeverei fazer para entrar, um dia, no vosso reino?- Em verdade te digo - replicou-lhe Jesus, carinhosamente - quemuitos virão do Ocidente e do Oriente, procurando as portas do Céu, massomente encontrarão o reino de Deus e de sua justiça aqueles que amaremprofundamente, acima de todas as coisas da Terra, ao nosso Pai que estános Céus, amando o próximo como a si mesmos.E espraiando o olhar compassivo e misericordioso por sobre aassembléia vasta, continuou com doçura:- Muitos, também, dos que foram aqui chamados, serão escolhidospara o grande sacrifício que se aproxima!... Esses me encontrarão no reinocelestial, porque as suas renúncias hão-de ser o sal da Terra e o sol de umnovo dia!...- Senhor - aventurou o ancião, com os olhos rasos de lágrimas -,tudo faria eu por ser um dos vossos escolhidos!...Mas Jesus, fitando fixamente o patriarca de Samaria, murmurou cominfinita ternura:- Simeão, vai em paz e não tenhas pressa, porque, em verdade,aceitarei o teu sacrifício no momento oportuno...E estendendo o raio de luz dos seus olhos até à figura de Lívia, quelhe devorava as palavras com a sede ardente da sua atenção, exclamoucom as claridades proféticas de suas exortações:
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...- Quanto a ti, regozija-te em Nosso Pai, porque as minhas palavras eensinamentos te tocaram para sempre o coração. Vai e não descreias,porque tempo virá em que saberei aceitar as tuas abnegaçõessantificantes!Essas palavras foram ditas numa tal atitude, que a esposa dosenador não teve dificuldade em lhes apreender o sentido profundo, paraum futuro distante.Aos poucos, dispersou-se a grande assembléia dos pobres, dosenfermos e dos aflitos.Era noite quando Lívia e Ana regressaram à casa solarenga,confortadas pelas graças recebidas das mãos caridosas do Messias.Profunda sensação de alívio e conforto inundava-lhe a alma.Penetrando, porém, nos seus aposentos, Lívia encontrou de frente afigura enérgica do marido, que deixava, transparecer na fisionomiacarregada os mais intensos sinais de irritação, como acontecia nosmomentos de seu mais ríspido mau humor. Ela notou-lhe a exacerbação deânimo, mas, ao contrário de outras vezes, parecia inteiramente preparadapara vencer as mais tremendas lutas do coração, porque, com serenidadeimperturbável, o encarou face a face, enfrentando-lhe o olhar suspeitoso.Afigurava-se-lhe que a flor de eterna paz espiritual lhe desabrochara noíntimo, ao suave calor das palavras do Cristo, porquanto lhe parecia haveratingido o terreno, até então desconhecido, de serenidade estranha esuperior.Depois de fitá-la de alto a baixo com o seu olhar duro e inquiridor,exclamou Públio, mal sopitando a cólera incompreensível:- Então, que é isso? Que poderosas razões levariam a senhora aausentar-se de casa em horas tão impróprias para as mães de família?- Públio - respondeu com humildade, estranhando aquele tratamentocerimonioso -, por mais que buscasse comunicar-te minha resolução desair
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na tarde de hoje, fugiste sempre de minha presença, esquivando-te àminha consulta e eu necessitava procurar o Messias de Nazaré, de modo aacalmar meu coração desventurado- E precisavas de disfarce para encontrar o profeta do povo? -atalhou o senador, com ironia.É a primeira vez que noto uma patrícia usando tais artifícios paraconsolar o coração. Vai a tanto, assim, o seu menosprezo pelas nossasmais sagradas tradições familiares?- Supus não me ficasse bem fazer-me notada na multidão daspessoas pobres e infelizes que procuram a Jesus nas margens do lago, e,identificando-me com os sofredores, não presumi desacatar nossoscostumes familiares, mas, sim, acreditei agir em favor do nosso nome,considerando a circunstância de ocupares, no momento, nesta província, amais alta expressão política do Império.- A menos que esteja disfarçando algum outro sentimento, comodissimula a posição social com a indumentária, muito errou procurando oMessias nesses trajes, porque, afinal, estou investido de poderes pararequisitar a presença de qualquer pessoa da região em minha casa!- Mas Jesus - revidou Lívia, corajosamente - deve estar para nósmuito acima dos poderes humanos, que sabemos tão precários, por vezes.Acho que a cura da nossa filhinha, diante da qual todos os nossosrecursos foram impotentes, é o bastante para fazê-lo credor da nossagratidão imperecível.- Ignorava que a sua organização mental fosse tão frágil em face dossucessos do Mestre de Nazaré, aqui em Cafarnaum - continuou o senador,asperamente.A cura de nossa filha? Como assegurar uma coisa que a suaargumentação pessoal não pode provar com dados positivos? E ainda queesse homem, revestido de forças divinas para o espírito simples eignorante dos pescadores galileus, tivesse
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...operado essa cura com a sua intervenção sobrenatural, vindo a estemundo da parte dos deuses, poderíamos chamar-lhe impiedoso e cruel,sarando uma menina enferma de tantos anos e permitindo que os gêniosdo mal e da perversidade nos arrebatassem o filhinho sadio e carinhoso,em cuja fronte colocava a minha ternura de pai todo um futuro brilhante epromissor!- Cala-te, Públio! - revidou ela, tomada de uma força superior que lheconservava toda a serenidade do coração. - Recorda-te que os deusespodem humilhar-nos, com dureza, a vaidade e o orgulho absurdos... SeJesus de Nazaré nos curou a filhinha bem-amada, que apertávamos nosbraços frágeis contra os poderes imensos da morte, podia permitir quefôssemos tocados no mais sagrado sentimento de nossa alma, com oincompreensível desaparecimento do nosso Marcus, para que nossentíssemos inclinados à piedade e à comiseração pelos nossossemelhantes!...- A senhora se compromete com essa demasiada tolerância, que vaiao absurdo da fraternização com os escravos - disse Públio, com rispideze austera severidade.Tal atitude de sua parte me fez pensar, seriamente, que a suapersonalidade mudou no decurso deste ano, porque as suas idéias, longedo nível social da sede do Império, baixaram ao terreno dos sentimentosmais relaxados, em face da compostura que se exige da mulher de umsenador, ou da matrona romana.Lívia ouvira, angustiadamente, as palavras injustificáveis do marido.Nunca o vira tão irritado, em todo o transcurso da vida conjugal; mas,verificara, em si própria, uma renovação singular, como se o pão rústico,abençoado pelo Mestre, lhe transfigurasse as mais recônditas fibras daconsciência. Seus olhos se enchiam de lágrimas, não por um orgulhoferido ou pela ingratidão que aquelas admoestações injustas revelavam,mas com profunda com-
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paixão do esposo, que não a compreendia, e adivinhando a dolorosatempestade que lhe fustigava o coração generoso, porém arbitrário, noplano de suas resoluções. Serena e silenciosa, não se justificou perante asseveras reprimendas.Foi quando, então, compreendendo que aquele atrito não deveriaprosseguir, dirigiu-se o senador para a porta de saída do apartamento,abrindo-a com estrépito, a exclamar:- Jamais fiz uma viagem tão penosa e tão infeliz! Gênios malditosparecem presidir ás minhas atividades na Palestina, porque, se curei umafilha, perdi um filhinho no desconhecido e começo a perder a mulher noabismo das irreflexões e da incoerência; e acabarei, também, perdendo-mepara sempre.Dizendo-o, bateu a porta com toda a força dos seus movimentosinstintivos, encaminhando-se ao gabinete, enquanto a esposa, de coraçãogenuflexo, dirigia o pensamento para aquele Jesus carinhoso e terno, queviera ao mundo para salvar todos os pecadores. Lágrimas dolorosasfluíam-lhe dos olhos, fixos ainda na paisagem do lago de Genesaré, aondeparecia haver regressado em espírito, novamente. Lá estava o Mestre, ematitudes doces de prece, cravando nas estrelas do céu os olhosfulgurantes.Figurou-se-lhe que Jesus também lhe notara a presença naquelahora sombria da noite, porque desviara o olhar fúlgido do firmamentoconstelado e estendia-lhe os braços compassivos e misericordiosos,exclamando com infinita doçura:- Filha, deixa que chorem os teus olhos as imperfeições da alma queo Nosso Pai destinou para gêmea da tua!... Não esperes deste mundo maisque lágrimas e padecimentos, porque é na dor que os corações selucificam para o céu... Um momento chegará em que te sentirás no acumedas aflições, mas não duvides da minha misericórdia, porque no momentooportuno, quando todos te desprezarem, eu te chamarei ao meu reino dedivinas
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...esperanças, onde poderás aguardar teu esposo, no curso incessante dosséculos!...Pareceu-lhe que o Mestre continuaria a embalar-lhe o coração comsuaves e carinhosas promessas de bem-aventurança, mas um ruídoqualquer a separara daquela visão de luz e de felicidade indefiníveis.Quebrara-se o quadro da sua preocupação espiritual, como se feitode tenuíssimas filigranas.Todavia, a esposa do senador compreendeu que não fôra vítima deuma perturbação alucinatória, e guardou, com amor, no âmago do coração,as doces palavras do Messias. E, enquanto despia os trajes galileus, a fimde retomar o curso de suas obrigações domésticas, de alma límpida econsolada, parecia, ainda, lobrigar o vulto sereno e amado do Senhor, naseminências verdejantes das margens do Tiberíades, através da neblinasuave, que lhe embaciava os olhos úmidos de pranto.
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132VIIINo grande dia do CalvárioDesde a sua altercação com a esposa, fechara-se Públio Lentulus namais penosa taciturnidade.Dolorosas suspeitas lhe vergastavam o coração impulsivo, acercado procedimento daquela que o destino algemara ao seu espírito, parasempre, no instituto da vida conjugal. Não pudera compreender o disfarcede que Lívia se utilizara para o encontro com o profeta de Nazaré, pois seutemperamento orgulhoso rebelava-se contra aquela atitude da mulher,considerando a sua posição social um penhor da veneração e do respeitode todos e dando guarida, assim, às mais penosas desconfianças,intoxicado pelas calúnias de Fúlvia e Sulpício.Algum tempo decorrera e, enquanto ele se enclausurava no seumutismo e na sua melancolia, Lívia abroquelava-se na fé, nas palavrascarinhosas e persuasivas do Nazareno. Nunca mais voltara ela aCafarnaum, com o fim de ouvir as consoladoras prédicas do Messias; mas,por intermédio de Ana, que lá comparecia pontualmente, procurou auxiliar,sempre que possível, os pobres que busca-
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...vam a palavra de Jesus, na medida dos seus recursos materiais. Profundatristeza lhe invadia o coração sensível e generoso, ao observar as atitudesincompreensíveis do companheiro; mas, a verdade é que já não colocavasuas esperanças em qualquer realização do orbe terrestre, volvendo asmais ardentes aspirações para aquele reino de Deus, maravilhoso esublime, onde tudo devia transpirar amor, ventura e paz, no seio farto desoberanas consolações celestes.Aproximava-se a Páscoa no ano 33. Numerosos amigos de Públiohaviam aconselhado a sua volta temporária a Jerusalém, a fim deintensificar os serviços da procura do filhinho, no curso das festividadesque concentravam, na época, as maiores multidões da Palestina,estabelecendo possibilidades mais amplas ao reencontro dodesaparecido. Peregrinos incontáveis, de todas as regiões da província,dirigiam-se para Jerusalém, a participar dos grandes festejos, oferecendo,simultaneamente, os tributos de sua fé, no suntuoso templo. A nobrezaindígena também se fazia notar ali, em tais circunstâncias, através de seuselementos mais representativos. Todos os partidos políticos searregimentavam para os serviços extraordinários das solenidades quereuniam as maiores massas do judaísmo, encaminhando-se para lá oshomens mais importantes do tempo. As autoridades romanas, por sua vez,concentravam-se, igualmente, em Jerusalém, na mesma ocasião, reunindo-se na cidade quase todos os centuriões e legionários, destacados aserviço do Império, nas paragens mais remotas da província.Públio Lentulus não desdenhou o alvitre e, antes que a cidade seenchesse de romeiros e exploradores, já ali se encontrava com a família,fornecendo instruções aos servos de confiança, conhecedores dopequenino Marcus, de maneira a estabelecer um cordão de investigadoresatentos e permanentes, enquanto perdurassem os festejos.
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Em Jerusalém, o convencionalismo social não se modificara,notando-se apenas a circunstância de Públio haver dispensado aresidência do tio Sálvio, adquirindo uma vila confortável e graciosa emplena rua movimentada, de onde pudesse observar, igualmente, asmanifestações populares.As vésperas da Páscoa chegaram com a volumosa preamar deperegrinos de todas as classes e de todas as localidades provinciais.Interessante observar-se, naqueles blocos heterogêneos de povo, oshábitos mais dispares entre si.Caravanas sem conto, revelando os mais esquisitos costumes,atravessavam as portas da cidade, patrulhadas por numerosos soldadospretorianosE enquanto o senador fazia comparações de ordem econômica,social e política, observando as massas de povo que afluíam às ruasmovimentadas, vamos encontrar Lívia em palestra íntima com a serva desua amizade e confiança.- Sabeis, senhora, que também o Messias chegou ontem à cidade? -exclamava Ana, com um raio de alegria nos grandes olhos.- Verdade? - perguntou Lívia, surpresa.- Sim, desde ontem chegou Jesus a Jerusalém, saudado por grandesmanifestações populares.A ressurreição de Lázaro, em Betânia, confirmou suas divinasvirtudes de Filho de Deus, entre os homens mais descrentes desta cidade,e acabo de saber que sua chegada foi objeto de imensas alegrias da partedo povo. Todas as janelas se enfeitaram de flores para a sua passagemtriunfal, as crianças espalharam palmas verdes e perfumadas no caminho,em homenagem a ele e aos seus discípulos!... Muita gente acompanhou oMestre desde as margens do lago de Genesaré, seguindo-o até aqui,através de todas as localidades.Quem me trouxe a notícia foi um conhecido pessoal, portador do tioSimeão, que também veio a Jerusalém, nessa grande caminhada, apesarda sua idade avançada...
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...- Ana, essa notícia é muito confortadora -disse-lhe a senhora, combondade - e se eu pudesse iria ouvir a palavra do Mestre, onde quer quefosse; mas, bem sabes as dificuldades para a consecução deste intento.Entretanto, ficas livre de tuas obrigações e trabalhos, durante apermanência de Jesus em Jerusalém, de modo a bem aproveitares asfestas da Páscoa, ouvindo, ao mesmo tempo, as prédicas do Messias, quetanto bem nos fazem ao coração.E, entregando à criada o indispensável auxílio pecuniário, observavaque Ana partia satisfeita em demanda das cercanias do Monte dasOliveiras, onde estacionavam massas compactas de peregrinos, entre osquais se notava a presença do velho Simeão, de Samaria, romeirodesassombrado que não trepidara, apesar da idade avançada, em aderir aomovimento das peregrinações pelos mais escabrosos e longos caminhos.Em casa de Lentulus não havia tanto interesse pelas grandesfestividades do judaísmo.Um único motivo justificava a presença do senador em Jerusalém,naqueles dias turbulentos: o da busca incessante do filho, que pareciaperdido para sempre.Diariamente ouvia os servos de confiança, após as diligênciasempreendidas e, de instante a instante, sentia-se mais acabrunhado poracerbas desilusões, considerando a luta inútil naquelas pesquisasexaustivas e infrutíferas.Na vivenda clara e ajardinada, as horas passavam vagarosas etristes. Embalde se movimentavam as ruas, patrulhadas por soldados echeias de criaturas de todos os matizes sociais. O vozerio das ruidosasmanifestações populares transpunha aquelas portas quase silenciosas,como ecos apagados de rumores longínquos.A penosa situação conjugal, em que se colocara, separava osenador da mulher, como se estivessem
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irremediavelmente distantes um do outro e destruídos os laços sagradosdo coração.Foi a esse retiro de calma aparente que Ana voltou, certa manhã,passados alguns dias, a fim de cientificar a senhora da inesperada prisãodo Messias.Com a simplicidade espontânea e sincera da alma popular, que elaencarnava, a serva humilde historiou, com os mais íntimos pormenores, acena provocada pela ingratidão de um dos discípulos, em virtude dodespeito e da ambição dos sacerdotes e fariseus do templo da grandecidade israelita.Amargamente compungida em face do acontecimento, Líviaconsiderou que, se fosse noutro tempo, recorreria imediatamente àproteção política do marido, de modo a evitar ao profeta de Nazaré osataques das ambições desmesuradas. Agora, porém, reconhecia não lheser possível socorrer-se do prestigio do companheiro, em taiscircunstâncias. Mesmo assim, procurou aproximar-se dele, por todos osmodos, embora improficuamente. De uma sala contígua ao seu gabinete,notou que Públio atendia a numerosas pessoas que o procuravamparticularmente, em atitude discreta; e o interessante é que, segundo assuas observações, todos expunham ao senador o mesmo assunto, isto é, aprisão inesperada de Jesus Nazareno - acontecimento que desviara todasas atenções das festividades da Páscoa, tal o interesse despertado pelosfeitos do Mestre, em todos os espíritos. Alguns solicitavam a suaintervenção no processo do acusado; outros, da parte dos fariseus ligadosaos sacerdotes do Sinédrio, encareciam aos seus olhos o perigo daspregações de Jesus, apresentado por muitos como revolucionárioinconsciente, contra os poderes políticos do Império.Debalde esperou Lívia que o marido lhe concedesse dois minutos deatenção, no compartimento próximo do seu gabinete privado.
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...Sua ansiedade tocava o apogeu, quando lobrigou a figura deSulpício Tarquinius, que vinha da parte de Pilatos solicitar ao senador oobséquio da sua presença, imediatamente, no palácio do governoprovincial, a fim de resolver um caso de consciência.Públio Lentulus não se fez rogado.Ponderando os deveres de homem de Estado, concluiu que deveriaesquecer quaisquer prevenções da sua vida particular e privada,marchando ao encontro das obrigações que devia ao Império.Lívia perdeu, então, toda a esperança de implorar-lhe auxílio para oMestre, naquele dia. Sem saber porque, intensa amargura invadia-lhe omundo íntimo. E foi com a alma envolta em sombras que elevou ao PaiCelestial as suas preces fervorosas e sinceras, por aquele que seucoração considerava lúcido emissário dos céus, suplicando, a todas asforças do bem, livrassem o Filho de Deus da perseguição e da perfídia doshomens.Ao chegar à corte provincial romana, naquele dia inesquecível deJerusalém, Públio Lentulus foi tomado de extraordinária surpresa.Ondas compactas de povo se adensavam na praça extensa, emgritaria ensurdecedora.Pilatos recebeu-o com deferência e solicitude, conduzindo-o a umgabinete amplo, onde se reunia pequeno número de patrícios, escolhidos adedo em Jerusalém. O pretor Sálvio, funcionários de destaque, militaresgraduados e alguns poucos romanos civis, de nomeada, que passavameventualmente pela cidade, ali se aglomeravam, convocados pelogovernador, que se dirigiu a Públio Lentulus, nestes termos:- Senador, não sei se tivestes ensejo de conhecer, na Galileia, umhomem extraordinário que o povo se habituou a chamar Jesus Nazareno.Esse homem foi agora preso, em virtude da condenação dos membros doSinédrio, e a massa popular que o havia recebido, nesta cidade, compalmas e flores, pede agora, nesta praça, o seu imediato julgamento
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por parte das autoridades provinciais, em confirmação da sentençaproferida pelos sacerdotes de Jerusalém.Eu, francamente, não lhe vejo culpa alguma, senão a de ardentevisionário de coisas que não posso ou não sei compreender,surpreendendo-me amargamente o seu penoso estado de pobreza.Neste comenos, penetraram na sala as duas irmãs, Cláudia e Fúlvia,que tomaram assento nesse conselho íntimo de patrícios.- Ainda esta noite - continuou Pilatos, apontando para a esposa -,parece que os augúrios dos deuses se manifestaram para a minhaorientação, pois Cláudia sonhou que uma voz lhe recomendava que eu nãodeveria arriscar minha responsabilidade no julgamento desse homemjusto.Resolvi, portanto, agir em consciência, aqui reunindo todos ospatrícios e romanos notáveis de Jerusalém, para examinarmos o assunto,de modo que o meu ato não prejudique os interesses do Império, nemcolida com o meu ideal de justiça.Que dizeis, pois, dos meus escrúpulos, na qualidade derepresentante direto do Senado e do Imperador, entre nós, nestemomento?- Vossa atitude - obtemperou o senador, compenetrado de suasresponsabilidades -- revela o máximo critério nas questõesadministrativas.E, recordando, no íntimo, os bens que havia recebido do profeta coma cura da filhinha, embora as dúvidas levantadas por seu orgulho evaidade, continuou:- Conheci de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, ondeninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário. Suas ações,ali, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tiveconhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer institutosocial ou político, do Império. Certamente, alguém o toma aqui comopretendendo a autoridade política da Judeia, cevando-se no seu nome asambições e o despeito dos
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...sacerdotes do templo. Mas, já que guardais no coração os melhoresescrúpulos, porque não enviais o prisioneiro ao julgamento de Ântipas, aquem, com mais propriedade, deve interessar a solução de semelhanteassunto? Representando, nestes dias, o governo da Galileia aqui emJerusalém, acho que ninguém, melhor que Herodes, pode resolver em sãconsciência um caso como este, considerando-se a circunstância de quejulgará um compatrício seu, já que não vos supondes de posse de todosos elementos para proferir sentença definitiva nesse processo insólito.A idéia foi unanimemente aceita, sendo o acusado conduzido àpresença de Herodes Ântipas, por alguns centuriões, obedecendo-se,rigorosamente, as determinações de Pilatos nesse sentido.Todavia, no palácio do Tetrarca da Galileia, foi Jesus de Nazarérecebido com profundo sarcasmo.Apelidado pela gente simples como "Rei dos Judeus" esimbolizando a esperança de certas reivindicações políticas paranumerosos de seus seguidores, entre os quais se incluía o famosodiscípulo de Kerioth, o mestre de Nazaré foi tratado pelo príncipe deTiberíades como vulgar conspirador, humilhado e vencido.Ântipas, porém, para fazer sentir ao Procurador da Judeia a conta deridículo em que tomava os seus escrúpulos, mandou que se tratasse oprisioneiro com o máximo de ironia.Vestiu-lhe uma túnica alva, igual à indumentária dos príncipes dotempo, colocando-lhe nos braços uma cana imunda à guisa de cetro, ecoroou-lhe a fronte abatida com uma auréola de venenosos espinhos,devolvendo-o à sanção de Pilatos, no turbilhão de gritarias da populaçaexacerbada.Muitos soldados romanos cercavam o acusado, protegendo-o dasinvestidas da massa furiosa e inconsciente.Jesus, trajando, por irrisão, a túnica da realeza, coroado de espinhose empunhando uma cana
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como símbolo do seu reinado no mundo, deixava transparecer, nos olhosprofundos, indefinível melancolia.Cientificado de que o prisioneiro era devolvido por Ântipas ao seujulgamento, o governador dirigiu-se novamente aos seus conterrâneos,exclamando:- Meus amigos, não obstante nossos esforços, Herodes apelatambém para nós outros, a fim de se confirmar a peça condenatória doprofeta Nazareno, recambiando-o com a sua situação penosamenteagravada perante o povo, porquanto, como suprema autoridade emTiberíades, tratou o prisioneiro com revoltante sarcasmo, dando-nos aentender o desprezo com que supõe deva ele ser encarado pela nossajustiça e administração.Tão amarga situação contrista-me bastante, porque o coração me dizque esse homem é um justo; mas, que fazermos em semelhanteconjuntura?Da câmara isolada, onde se reunia o apressado e reduzido conselhode patrícios, podiam observar-se os ecos rumorosos da turba amotinada,em espantosa gritaria.Um ajudante de ordens do governador, de nome Polibius, homemsensato e honesto, penetrou no recinto, pálido e quase trêmulo, dirigindo-se a Pilatos:- Senhor Governador, a multidão enfurecida ameaça invadir a casa,se não confirmardes a sentença condenatória de Jesus Nazareno, dentrodo menor prazo possível...- Mas, isso é um absurdo - retrucou Pilatos, emocionado. - E, afinal,que diz o profeta, em tais circunstâncias? Sofre tudo sem uma palavra derecriminação e sem um apelo oficial aos tribunais de justiça?- Senhor - replicou Polibius, igualmente impressionado -, oprisioneiro é extraordinário na serenidade e na resignação. Deixa-seconduzir pelos
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...algozes com a docilidade de um cordeiro e nada reclama, nem mesmo osupremo abandono em que o deixaram quase todos os diletos discípulosda sua doutrina!Comovido com os seus padecimentos, fui falar-lhe pessoalmente e,inquirindo-o sobre os seus martírios, afirmou que poderia invocar aslegiões de seus anjos e pulverizar toda a Jerusalém dentro de um minuto,mas que isso não estava nos desígnios divinos e, sim, a sua humilhaçãoinfamante, para que se cumprissem as determinações das Escrituras. Fiz-lhe ver, então, que poderia recorrer à vossa magnanimidade, a fim de seordenar um processo dentro de nossos dispositivos judiciários, demaneira a comprovar sua inocência e, todavia, recusou semelhanterecurso, alegando que prescinde de toda proteção política dos homens,para confiar tão somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que estános céus!- Homem extraordinário!... - revidou Pilatos, enquanto os presentes oacompanhavam estupefatos.Polibius - continuou ele -, que poderíamos fazer para evitar-lhe amorte nefanda, nas mãos criminosas da massa inconsciente?- Senhor, em vista da necessidade de resolução rápida, sugiro apena dos açoites na praça pública, por ver se assim conseguimos amainaras iras populares, evitando ao prisioneiro a morte ignominiosa nas mãosde celerados sem consciência...- Mas, os açoites?! - diz Públio Lentulus, admirado, antevendo astorturas do horrível suplício.- Sim, meu amigo - redargüiu o governador, dirigindo-lhe a palavracom atenção respeitosa -, a idéia de Polibius é bem lembrada. Paraevitarmos ao acusado a morte ignominiosa, temos de lançar mão desterecurso. Vivendo na Judeia há quase sete anos, conheço este povo e seide suas temíveis atitudes, quando as suas paixões se desencadeiam.
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O suplício foi, então, ordenado, no pressuposto de evitar maioresmales.Diante de todos, foi Jesus açoitado, de maneira impiedosa, aosberros estridentes da multidão amotinada.Nesse instante doloroso, Públio e alguns romanos se ausentarampor momentos da câmara privada onde se reuniam, a fim de observaremos movimentos instintivos da massa fanática e ignorante. Não parecia queos peregrinos de Jerusalém haviam acorrido à cidade para ascomemorações alegres da Páscoa, mas, tão somente, para procederem àcondenação do humilde Messias de Nazaré. De quando em quando, fazia-se mister o concurso decidido de centuriões desassombrados, quedispersavam certos grupos mais exaltados, a golpes de chanfalho.O senador fez questão de aproximar-se do supliciado, na suasprovações dolorosas e extremas.Aquele rosto enérgico e meigo, em que os seus olhos haviamdivisado uma auréola de luz suave e misericordiosa, nas margens doTiberíades, estava agora banhado de suor sangrento a manar-lhe da frontedilacerada pelos espinhos perfurantes, misturando-se de lágrimasdolorosas; seus delicados traços fisionômicos pareciam invadidos depalidez angustiada e indescritível; os cabelos caíam-lhe na mesmadisposição encantadora sobre os ombros seminus e, todavia, estavamagora desalinhados pela imposição da coroa ignominiosa; o corpovacilava, trêmulo, a cada vergastada mais forte, mas o olhar profundosaturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelandoamargurada e indefinível melancolia.Por um momento, seus olhos encontraram os do senador, quebaixou a fronte, tocado pela imorredoura impressão daquela sobre-humana majestade.Públio Lentulus voltou intimamente compungido ao interior dopalácio, onde, daí a poucos
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...minutos, retornava Polibius, cientificando o governador de que a pena doaçoite não havia saciado, infelizmente, as iras da população enfurecida,que reclamava a crucificação do condenado.Penosamente surpreendido, exclamou o senador, dirigindo-se aPilatos, com intimidade:- Não tendes, porventura, algum prisioneiro com processoconsumado, que possa substituir o profeta em tão horrorosas penas? Asmassas possuem alma caprichosa e versátil e é bem possível que a dehoje se satisfaça com a crucificação de algum criminoso, em lugar dessehomem, que pode ser um mago ou visionário, mas é um coração caridosoe justo.O governador da Judeia concentrou-se por momentos, recorrendo àmemória, com o fim de encontrar a desejada solução.Lembrou-se então de Barrabás, personalidade temível, que seencontrava no cárcere aguardando a última pena, conhecido e odiado detodos pelo seu comprovado espírito de perversidade, respondendo afinal:- Muito bem!... Temos aqui um celerado, no cárcere, para alívio detodos, e que poderia, com efeito, substituir o profeta na morte infamante!...E mandando fazer o possível silêncio, de uma das eminências doedifício, ordenou que o povo escolhesse entre o bandido e Jesus.Mas, com grande surpresa de todos os presentes, a multidãobradava com sinistro alarido, numa torrente de impropérios:- Jesus!... Jesus!... Absolvemos Barrabás!... Condenamos a Jesus!...Crucificai-o!... Crucificai-o!...Todos os romanos se aproximaram das janelas, observando ainconsciência da massa criminosa, no ímpeto de seus instintosdesencadeados.- Que fazer diante de tal quadro? - perguntou Pilatos, emocionado,ao senador que o ouvia atentamente.
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- Meu amigo - respondeu Públio, com energia -, se a decisãodependesse tão somente de mim, fundamentá-la-ia em nossos códigosjudiciários, cuja evolução não comporta mais uma condenação tãosumária como esta, e mandava dispersar a multidão inconsciente à pata decavalo; mas, considero que as minhas atribuições transitórias, junto aovosso governo, não me outorgam direito a tais desmandos e, além disso,tendes aqui uma experiência de sete anos consecutivos.De minha parte, suponho que tudo foi feito para que as decisões nãofossem precipitadas.Antes de tudo, o prisioneiro foi enviado ao julgamento de Ântipas,que complicou a situação, diante da populaça irresponsável, dentro dassuas infelizes noções da tarefa de um governo, deixando-vos aresponsabilidade da última palavra sobre o assunto; em seguida,determinastes o suplício do açoite para satisfazer ao povo amotinado, e,agora, acabais de indicar outro criminoso para a crucificação, em lugar doacusado. Tudo inutilmente.Como homem, estou contra este povo inconsciente e infeliz e tudofaria por salvar o inocente; mas, como romano, acho que uma província,como esta, não passa de uma unidade econômica do Império, não noscompetindo, a nós outros, o direito de interferência nos seus grandesproblemas morais e presumindo, desse modo, que a responsabilidadedesta morte nefanda deve caber agora, exclusivamente, a essa turbaignorante e desesperada, e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que adirigem.Pilatos enterrou a fronte nas mãos, como a refletir maduramentenaquelas ponderações; mas, antes que pudesse externar sua opinião, eisque Polibius aparece aflito, exclamando em atitude discreta:- Senhor governador, é preciso apressar vossa decisão. Espíritosmaldizentes começam a duvidar da vossa fidelidade aos poderes de César,compelidos pela intriga dos sacerdotes do templo,
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...colocando a vossa dignidade em terreno equívoco para todos... Alémdisso, a populaça tenta invadir a casa, tornando-se necessário assumirdesatitude decisiva, sem perda de um minuto.Pilatos ficou rubro de cólera, diante de semelhantes injunções,exclamando irritado, como se estivesse sob o jugo do mais singular dosdeterminismos:- Está bem! Lavarei as mãos deste ignominioso delito! O povo deJerusalém será satisfeito...E, procedendo a esse ato que o celebrizaria para sempre, dirigiualgumas palavras ao condenado, mandando, em seguida, recolhê-lo a umacela, onde pudesse permanecer alguns minutos, sem as grosseirasinvestidas da turba impetuosa, antes que a multidão o conduzisse aoGólgota, que, na linguagem usual, deverá ser traduzido por Lugar daCaveira.Um sol abrasador tornara sufocante e insuportável a atmosfera.Saciada, afinal, a fúria da multidão nos seus desvairamentosinfelizes, numerosos soldados seguiram o prisioneiro, que demandava omonte da crucificação, a passos vacilantes sob o madeiro da ignomínia,que a justiça da época destinava aos bandidos e aos ladrões.Até o momento de sua saída sob a cruz, ninguém se interessara porele, junto à autoridade ([o governador da Judeia.Depreendia daí o senador que, quantos seguiam o Mestre de Nazarénas margens do lago, em Cafarnaum, o haviam abandonado inteiramente.De uma das janelas do palácio, considerou, penalizado, o desprezoinfligido àquele homem que, um dia, o dominara com a força magnética dasua personalidade incompreensível, observando a ondulação da turbaenfurecida, ao sair o inesquecível cortejo.Ao lado do Mestre não se via mais a carinhosa assistência dosdiscípulos e seus numerosos segui-
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dores. Apenas algumas mulheres - entre as quais se destacava o vultoimpressionante e agoniado de sua mãe - o amparavam afetuosamente, nodoloroso e derradeiro transe.Aos poucos, a praça extensa aquietou-se ao calor sufocante da tardeque se avizinhava.A distância, ouvia-se ainda a vozearia da plebe, aliada ao relinchardos cavalos e ao tinir das armaduras.Impressionados com o espetáculo que, aliás, não era incomum naPalestina, reuniram-se os romanos em uma das salas amplas do paláciogovernamental, em animada palestra, comentando os instintos e paixõesferozes da plebe enfurecida.Daí a minutos, Cláudia mandava servir doces, vinhos e frutas, e,enquanto a conversação timbrava os problemas da província e as intrigasda corte de Tibério, mal imaginava aquele punhado de criaturas que, nacruz grosseira e humilde do Gólgota, ia acender-se uma gloriosa luz paratodos os séculos terrestres.
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147IXA calúnia vitoriosaSe Jesus de Nazaré havia sido abandonado por seus discípulos eseguidores mais diretos, o mesmo não se verificara quanto ao grandenúmero de criaturas humildes que o acompanhavam com devoçãopurificada e sincera.É verdade que essas almas, raras, não revelaram francamente assuas simpatias perante a turba desvairada, temendo-lhe as sanhasdestruidoras, mas, muitos espíritos piedosos, como Ana e Simeão,contemplaram de perto os martírios do Senhor sob o açoite infamante,cheios de lágrimas angustiosas e esperando que, a cada momento, sepudesse manifestar a justiça de Deus contra a perversidade dos homens, afavor do Messias.Contudo, esvaeceram-se-lhes as derradeiras esperanças, quando,sob o peso da cruz, o supliciado caminhou a passos cambaleantes, para omonte da última injúria, depois de confirmada a ignóbil sentença.Foi assim que Ana e seu tio, reconhecendo inevitável o martírio dacrucificação, deliberaram
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seguir para a residência de Públio, para suplicar o patrocínio de Lívia,junto ao governador.Enquanto o cortejo sinistro e impressionante se punha em marchanos seus movimentos vagarosos, ambos se desviaram da massa,encaminhando-se por uma viela ensolarada, em busca do almejadosocorro.Penetrando na residência, enquanto Simeão a esperava,pacientemente, numa calçada próxima, dirige-se Ana à esposa do senador,que a recebeu surpresa e angustiada.- Senhora - diz, mal ocultando as lágrimas -, o profeta de Nazaré jáestá a caminho da morte ignominiosa na cruz, entre os ladrões!...Uma emoção mais forte embargara-lhe a voz, sufocada de pranto.- Como? - respondeu Lívia, penosamente surpreendida - se a prisãodata de tão poucas horas?- Mas é a verdade... - revidou a serva, compungida. - E em nomedaqueles mesmos sofredores que vistes consolados pela sua palavracarinhosa e amiga, Junto às águas do Tiberíades, eu e meu tio Simeãovimos implorar o vosso auxílio pessoal perante o governador, a fim defazermos um esforço derradeiro pelo Messias!...- Mas, uma condenação como essa, sem estudo, sem exame, é lápossível? Vive, então, aqui este povo sem outra lei que não a da barbaria?- exclamou a senhora, visivelmente revoltada com a inopinada notícia.Como se desejasse arrancá-la a qualquer divagação incompatívelcom o momento, a serva insistiu com decisão e amargura:- Entretanto, senhora, não podemos perder um minuto.- Antes de tudo, porém, eu precisava consultar meu marido sobre oassunto... - monologou a esposa do senador, recordando-se,repentinamente, dos seus deveres conjugais.
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...Onde estaria Públio naquele instante? Desde a manhã, nãoregressara a casa, após o chamado insistente de Pilatos. Teria colaboradona condenação do Messias? Num relance, a pobre senhora examinou todaa situação nos seus mínimos detalhes, recordando, igualmente, os bensinfinitos que o seu coração havia recebido das mãos caridosas ecomplacentes do Mestre Nazareno, e, como se estivesse iluminada poruma força superior que lhe fazia esquecer todas as questões transitóriasda Terra, exclamou com heróica resolução:- Está bem, Ana, irei em tua companhia pedir a proteção de Pilatospara o profeta.Esperar-me-ás um momento, enquanto vou retomar aqueles trajesgalileus que me serviram naquela tarde de Cafarnaum, dirigindo-me, destemodo, ao governador, sem provocar a atenção da turbamulta desenfreada.Em poucos minutos, sem refletir nas conseqüências da suadesesperada atitude, Lívia estava na rua, novamente enfiada nos trajessimples da gente pobre da Galileia, trocando amarguradas impressõescom o ancião de Samaria e sua sobrinha, acerca dos dolorososacontecimentos.Aproximando-se da sede do governo provincial, seu coraçãopalpitou com mais força, obrigando-a a mais demorados pensamentos.Não seria uma temeridade da sua parte procurar o governador, semprévio conhecimento do marido? Mas, tudo não fizera ela, em vão, paraaproximar-se do esposo arredio e irritado, de maneira a reerguer suaantiga confiança? E Pilatos? Na sua imaginação, guardava ainda ospormenores das amargas comoções daquela noite em que lhe fôra elemais franco, quanto aos sentimentos inconfessáveis que a sua figura demulher lhe havia inspiradoLívia hesitou ao penetrar num dos ângulos da grande praça, agoraadormecida por um sol causticante, de brasas vivas.
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Seu raciocínio contrariava a atitude que assumira aos apelos daserva, que representava, aos seus olhos, a súplica angustiada de inúmerosespíritos desvalidos; seu coração, porém, sancionava plenamente aquelederradeiro esforço em favor do emissário celeste que lhe havia curado aschagas da filhinha, enchendo de tranqüilidade inalterável o seu coraçãoatormentado de esposa e mãe, tantas vezes incompreendido. Além disso,nesse conflito interior da razão e do sentimento, este último lhe fazialembrar que Jesus, nas margens do lago, lhe falara de amarguradossacrifícios pela sua grande causa, e não seria aquela a hora sagrada dagratidão de sua fé ardente e do seu testemunho de reconhecimento?Aliviada pela íntima satisfação do cumprimento do seu carinhoso dever,avançou então, desassombradamente, deixando os dois companheiros àsua espera, num dos largos recantos da praça, enquanto procurava ganharas adjacências do edifício, com ligeiro desembaraço.Batia-lhe o coração descompassadamente.Como encontrar o governador da Judeia àquela hora? Um solardente concentrava, em tudo, calor intolerável e sufocante.O cortejo, em demanda do Gólgota, partira havia quase uma hora e opalácio parecia agora mergulhado numa atmosfera de silêncio e de sono,após as penosas confusões daquele dia.Apenas alguns centuriões montavam guarda ao edifício e, quandoLívia alcançou menor distância das portas principais de acesso ao interior,eis que se lhe depara a figura de Sulpício, a quem se dirigiu com o máximode confiança e de inocência, pedindo-lhe o obséquio de solicitar umaaudiência privada e imediata ao governador, em seu nome. a fim de falar-lhe quanto à dolorosa situação de Jesus de Nazaré.O lictor mirou-a de alto a baixo com o olhar de lascívia e cupidez quelhe eram características e, crendo piamente nas relações ilícitas daquela
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... 151mulher com o Procurador da Judeia, em virtude de suas observaçõespessoais, por coincidências que se lhe figuravam a realidade perfeitadaquela suposta prevaricação, presumiu, naquele ato insólito, não omotivo apresentado, que lhe pareceu ótimo pretexto para afastar quaisquerdesconfianças, mas o objetivo de se encontrar com o homem de suaspreferências.Criatura ignóbil, de que se utilizava o governador para instrumentode suas paixões malignas, entendeu que semelhante entrevista deveria serlevada a efeito na maior intimidade, e, sabendo que Públio Lentulus aindalá se encontrava em animada palestra com os companheiros, conduziuLívia a um gabinete perfumado, onde se alinhavam preciosos vasos dearomas do Oriente, saturados de fluidos sutis e entontecedores, e ondePilatos recebia, por vezes, a visita furtiva das mulheres de condutaequívoca, convidadas a participar dos seus licenciosos prazeres.Ignorando, por completo, o mecanismo de circunstâncias que aconduziam a uma penosíssima situação, Lívia acompanhou o lictor aogabinete aludido, onde, embora estranhando a suntuosidade extravagantedo ambiente, se demorou alguns minutos, a sós, aguardandoansiosamente o instante de implorar, de viva voz, ao procurador da Judeiaa sua prestigiosa interferência a favor do generoso Messias de Nazaré.Nem ela, nem Sulpício, todavia, chegaram a perceber que uns olhosperscrutadores os acompanharam com profundo interesse, desde oexterior do edifício ao gabinete privado a que nos referimos.Era Fúlvia, que, conhecendo semelhante apartamento do palácio,surpreendera a esposa do senador, sob o disfarce daquela túnica humilde,da vida rural, enchendo-se-lhe o coração de pavorosos ciúmes, ao verificaraquela visita inesperada.Enquanto Sulpício Tarquinius fazia um sinal familiar ao governador,a que este atendeu de pron-
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to, indo imediatamente ao seu encontro num vasto corredor, ondemurmuraram ambos algumas palavras em tom discreto, cientificando-sePilatos da almejada entrevista em particular, aquela maliciosa criaturademandava alcovas do seu íntimo conhecimento, de maneira a certificar-se, positivamente, através dos reposteiros, da presença de Lívia na câmaraprivada do governador, destinada às suas expansões licenciosas.Certificada, em absoluto, do acontecimento, a caluniadoraantegozou o instante em que tomaria Públio pelas mãos, a fim de conduzi-lo à visão direta do suposto adultério de sua mulher e, quando regressavaao vasto salão, deixando transparecer levemente a satisfação sinistra dasua alma, ainda ouviu Pilatos exclamar com delicadeza para os seusconvidados:- Meus amigos, espero me concedam alguns minutos para atender auma entrevista privada e urgente, que eu não esperava neste momento.Acredito que, consumada a condenação do Messias de Nazaré, batem já aestas portas os que não tiveram coragem para defendê-lo publicamente,no momento oportuno!. . Vamos ver!E retirando-se com o assentimento unânime dos presentes, ogovernador atingia o gabinete reservado, onde, eminentementesurpreendido, encontrou o vulto nobre de Lívia, mais bela e mais sedutoranaqueles trajes despretensiosos e simples, e que lhe falou nestes termos:- Senhor governador, embora sem o consentimento prévio de meumarido, resolvi chegar até aqui, em virtude da urgência do assunto, asuplicar o vosso amparo político para a absolvição do profeta de Nazaré.Homem humilde e bom, caridoso e justo, que mal teria praticado paramorrer assim, de morte aviltante, entre dois ladrões? É por isso que,conhecendo-o pessoalmente e tendo-o na conta de um inspirado do céu,ouso invocar as vossas
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...elevadas qualidades de homem público, em favor do acusado!...Sua voz era trêmula, indicando as emoções que lhe iam nalma.- Senhora - respondeu Pilatos, fazendo o possível para sensibilizar eseduzir-lhe o coração com a fingida ternura de suas palavras -, tudo fizpara evitar a Jesus a morte no madeiro infamante, vencendo todos osmeus escrúpulos de homem de governo, mas, infelizmente, tudo estáconsumado. Nossa legislação foi vencida pelas iras da multidãodelinqüente, nas explosões injustificadas do seu ódio incompreensível.- Então, não é licito esperarmos nenhuma providência mais abeneficio desse homem caridoso e justo, condenado como vulgarmalfeitor? Será ele, então, crucificado pelo crime de praticar a caridade eplantar a fé no coração dos seus semelhantes, que ainda não sabemadquiri-la por si próprios?- Infelizmente, assim é... - replicou Pilatos, contrafeito. - Tudofizemos a fim de evitar os desatinos da plebe amotinada, mas os meusescrúpulos não conseguiram vencer, sendo obrigado a confirmar a penade Jesus, a contragosto.Por um momento, entregou-se Lívia às suas meditações dolorosas,como se estivesse inquirindo, a si mesma, qualquer providência nova aadotar sem perda de um minuto.Quanto ao governador, depois de imprimir uma pausa às suaspalavras, deixou que os instintos do homem surgissem, plenamente,naquelas circunstâncias.Aquele dia havia sido de lutas penosas e intensas. Singularabatimento físico lhe dominava os centros mais poderosos da forçaorgânica, mas, diante dos seus olhos habituados à conquista e, muitasvezes, aos recursos da própria crueldade, estava aquela mulher, que lheresistira... Poderosa algema parecia imantá-lo à sua personalidade simplese carinhosa, e ele, mais que nunca, desejou
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possuí-la, tornando-a, como as outras, um instrumento de suastransitórias paixões. O ambiente, sobretudo, conturbava-lhe as fontes maispuras do raciocínio. Aquele gabinete era destinado, exclusivamente, àssuas extravagâncias noturnas, e fluidos entontecedores pairavam emtodos os seus escaninhos, embotando os mais nobres pensamentos.Via a mulher ambicionada, perdida por alguns segundos emgraciosas cismas, diante da sua presença dominadora.Aquela graça simples, saturada de generosidade quase infantil ealiada aos olhos límpidos e profundos de madona do lar, obscureceu-lhe ocavalheirismo que, por vezes, aflorava no modo brusco das suas injustiçase crueldades de homem da vida particular e da vida pública.Avançando como tomado por força incoercível, exclamouinopinadamente, fazendo-lhe sentir o perigo da posição em que secolocara:- Nobre Lívia - começou ele, na inquietação de seus impurospensamentos -, nunca mais olvidei aquela noite, cheia de músicas e deestrelas, em que vos revelei pela primeira vez a ardência do meu coraçãoapaixonado... Esquecei, por um momento, esses judeus incompreensíveise ouvi, ainda uma vez, a palavra sincera dos profundos sentimentos queme inspirastes com as vossas virtudes e peregrina beleza!.- Senhor!... - teve forças para exclamar a pobre senhora, procurandoaliviar-se da afronta.Mas, o governador, com a ousadia dos homens impetuosos, nãoteve outro gesto senão o de obedecer aos seus caprichos impulsivos,tomando-lhe as mãos, atrevidamente.Lívia, todavia, movimentando todas as suas energias, alcançourecursos para se desvencilhar dos seus braços longos e fortes,redargüindo, intrépida:- Para trás, senhor! Acaso será esse o tratamento de um homem deEstado para com uma
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...cidadã romana e esposa de um senador ilustre do Império? E, ainda queme faltassem todos esses títulos, que me deveriam dignificar aos vossosolhos cúpidos e desumanos, suponho que não deveríeis faltar, nestemomento, com o comezinho dever de cavalheirismo respeitoso, quequalquer homem é obrigado a dispensar a uma mulher!O governador estacou ante aquele gesto heróico e imprevisto, tãohabituado estava ele aos mais avançados processos de sedução.A resistência daquela mulher espicaçava os desejos de vencer-lhe oorgulho nobre e a virtude incorruptível.Tinha ímpetos de se atirar àquela criatura delicada e frágil, noturbilhão de lascívia e voluptuosidade que lhe obumbravam o raciocínio;no entanto, força incoercível parecia impor-se aos seus caprichosperigosos de apaixonado, inutilizando-lhe as forças necessárias àexecução de semelhante cometimento.Neste comenos, a esposa do senador, lançando-lhe um olhardoloroso onde se podia ler toda a. extensão do seu sofrimento e do seudesprezo em face do ultraje recebido, retirou-se profundamenteemocionada, com o cérebro fervilhante dos mais desencontradospensamentos.Antes, porém, que a vejamos sair do gabinete, somos obrigados aretroceder alguns minutos, quando Fúlvia solicitou ao sobrinho de seumarido o obséquio de uma palavra em particular, pondo-o ao corrente detudo o que se passava.O senador experimentou um choque terrível no coração,pressentindo que a prevaricação da mulher estava prestes a confirmar-sediante dos seus próprios olhos, e, contudo, hesitou ainda acreditar emsemelhante vilania.- Lívia, aqui? - perguntou soturnamente à esposa do tio, dando aentender, pela inflexão da voz, que tudo não passava de criminosa calúnia.
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- Sim - exclamou Fúlvia, ansiosa por fornecer-lhe a prova tangível desuas asserções -, ela está em colóquio com o governador, no seucompartimento privado, sem ajuizar da situação e das circunstâncias emque se verifica tal encontro, porque, afinal, Cláudia ainda está nesta casae, perante a lei, minha irmã é a esposa legitima de Pilatos, mal habituadocom os costumes dissolutos da Corte, de onde foi enviado para cá emvirtude de sérios incidentes desta mesma natureza!Públio Lentulus arregalou os olhos, na sua ingenuidade, dandoguarida aos mais horríveis sentimentos, intoxicando-se com o veneno damais acerba desconfiança, em vista de todas as circunstâncias operaremcontra sua mulher, embora jogasse ele no assunto com os mais vastoscabedais da sua tolerância e liberalidade.Sua atitude de expectativa revelava ainda o máximo deincredulidade, com respeito às acusações que ouvira, mas, observando acaluniadora o seu angustiado silêncio, acudiu ansiosa, exclamando:- Senador, acompanhai-me através destas salas e vos entregarei achave do enigma, porquanto verificareis a leviandade de vossa esposa,com os vossos próprios olhos.- Desvairais? - perguntou ele, com serenidade terrível. - Um chefe defamília da nossa estirpe social, a menos que uma confiança mais forte lheoutorgue esse direito, não deve conhecer as intimidades domésticas deuma casa que não seja a sua própria.Percebendo que o golpe falhara, voltou Fúlvia a exclamar com amesma firmeza:- Está bem, já que não desejais fugir aos vossos princípios,aproximemo-nos de uma dessas janelas. Daqui mesmo, podereis observara veracidade de minhas palavras, com a retirada de Lívia dos apartamentosprivados deste palácio.E quase a tomar o interlocutor pelas mãos, tal o abatimento moralque se apossara dele, a
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...mulher do pretor aproximou-se do parapeito de uma janela próxima,seguida pelo senador, que a acompanhava, cambaleante.Não foram necessários outros argumentos que melhor oconvencessem.Chegados ao local preferido de Fúlvia, como posto de observação,em poucos segundos viram abrir-se a porta do gabinete indicado, aomesmo tempo que Lívia se retirava, nos seus disfarces galileus, deixandotransparecer na fisionomia os sinais evidentes da sua emoção, como sequisesse fugir de situação que a acabrunhava penosamente.Públio Lentulus sentiu a alma dilacerada para sempre. Considerou,num relance, que havia perdido todos os patrimônios de nobreza social epolítica, de envolta com as aspirações mais sagradas do seu coração.Diante da atitude de sua mulher, considerada por ele como indelévelignominia que lhe infamava o nome para sempre, supôs-se o maisdesventurado dos homens. Todos os seus sonhos estavam agora mortos,e perdidas, terrivelmente, todas as esperanças. Para o homem, a mulherescolhida representa a base sagrada de todas as realizações da suapersonalidade nos embates da vida, e ele experimentou que essa base lhefugia desequilibrando-lhe o cérebro e o coração.Contudo, nesse turbilhão de fantasmas da sua imaginaçãosuperexcitada, que escarneciam de suas mentirosas venturas, lobrigou ovulto suave e doce dos filhinhos, que o fitavam silenciosos e comovidos.Um deles vagava no desconhecido, mas a filha esperava-lhe o carinhopaternal e deveria ser, doravante, a razão da sua vida e a força de todas assuas esperanças.- Que dizeis, agora - exclamou Fúlvia, triunfante, arrancando-o doseu doloroso silêncio.- Vencestes! - respondeu secamente, com a voz embargada deemoção.E, dando à expressão fisionômica o máximo de energia, voltou aosalão extenso, a passos pesados e
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soturnos, despedindo-se heroicamente dos amigos, a pretexto de leveenxaqueca.- Senador, esperai um momento. O governador ainda não voltou dosseus aposentos particulares - exclamou um dos patrícios presentes.- Muito agradecido! - disse Públio, gravemente. Mas os prezadosamigos hão-de desculpar a insistência, apresentando minhas despedidas eagradecimentos ao nosso generoso anfitrião.E, sem mais delongas, mandou preparar a liteira que o conduziria deregresso ao lar, pelas mãos fortes dos escravos, de modo a proporcionaralgum repouso ao coração supliciado por emoções dolorosas einesquecíveis.Enquanto o senador se retira profundamente contrariado,acompanhemos Lívia, de volta à praça, a fim de notificar aos dois amigos oresultado improfícuo da sua tentativa.Profundas amarguras lhe pungiam o coração.Jamais pensara, na sua generosidade simples e confiante, que oprocurador da Judeia pudesse receber-lhe a súplica com tamanhademonstração de indiferença e impiedade pela sua situação de mulher.Procurou refazer-se daquelas emoções, em se aproximando de Anae do tio, porquanto lhe competia ocultar aquele desgosto no mais íntimodo coração.Junto de ambos os companheiros humildes, da mesma crença,deixou expandir a sua angústia, exclamando pesarosa:- Ana, infelizmente tudo está perdido! A sentença foi consumada enão há mais nenhum recurso!... O profeta carinhoso de Nazaré nunca maisvoltará a Cafarnaum para nos levar as suas consolações brandas eamigas!... A cruz de hoje será o prêmio, deste mundo, à sua bondade semlimites!...Todos os três tinham os olhos orvalhados de lágrimas.
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...- Faça-se, então, a vontade do Pai que está nos céus - exclamou aserva, prorrompendo em soluços.- Filhas - disse, porém, o ancião de Samaria, com o olhar profundo elímpido, fito no céu, onde fulguravam as irradiações do sol ardente -, oMessias nunca nos ocultou a verdade dos seus sacrifícios, dos martíriosque o aguardavam nestes sítios, a fim de nos ensinar que o seu reino nãoestá neste mundo! Nas sombras da minha velhice, estou apto a reconhecera grande realidade das suas palavras, porque honras e vanglórias,mocidade e fortuna, bem como as alegrias passageiras do plano terrestre,de nada valem, pois tudo aqui vem a ser ilusão que desaparece nosabismos da dor e do tempo... A única realidade tangível é a de nossa almaa caminho desse reino maravilhoso, cuja beleza e cuja luz nos foramtrazidas por suas lições inesquecíveis e carinhosas...- Mas - obtemperou Ana, entre lágrimas -nunca mais veremos aJesus de Nazaré, confortando-nos o coração!...- Que dizes, filha - exclamou Simeão, com firmeza. - Não sabes,então, que o Mestre afiançou que a sua presença consoladora é sempreinalterável entre os que se reúnem e se reunirão, neste mundo, em seunome? Regressando, agora, a Samaria, erguerei uma cruz à porta da nossachoupana e reunirei, ali, a comunidade dos crentes que desejaremcontinuar as amorosas tradições do Messias.E, depois de uma pausa em que parecia despertar sob o peso depungentes preocupações, acentuou:- Mas, não temos tempo a perder... Sigamos para o Gólgota... Vamosreceber, ainda uma vez, as bênçãos de Jesus!- Muito grato me seria acompanhá-los - retrucou Lívia,impressionada -; entretanto, urge volte a casa, onde me esperam oscuidados com a
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filha. Sei que hão-de relevar minha ausência, porque a verdade é queestou, em pensamento, junto à cruz do Mestre, meditando nos seusmartírios e inomináveis padecimentos... Meu coração acompanhará essaagonia indescritível, e que o Pai dos céus nos conceda a força precisapara suportarmos corajosamente o angustioso transe!...- Ide, senhora, que os vossos deveres de esposa e mãe são tambémmais que sagrados - exclamou Simeão, carinhosamente.E enquanto o velho e a sobrinha se dirigiam para o Calvário,escalando as vias públicas que demandavam a colina, Lívia regressava aolar, apressadamente, buscando os caminhos mais curtos, através dasvicias estreitas, de modo a voltar, quanto antes, não só pela circunstânciainesperada de sair à rua em trajes diferentes, compelida pelos imperativosdo momento, mas também porque inexplicável angústia lhe azorragava ocoração, fazendo-lhe experimentar uma necessidade mais forte de precese meditações.Chegando ao lar, seu primeiro cuidado foi retomar a túnica habitual,buscando um recanto mais silencioso dos seus apartamentos, para orarcom fervor ao Pai de infinita misericórdia.Daí a minutos, ouviu os ruídos indicativos da volta do esposo, que,notou, se recolhia ao gabinete particular, fechando a porta com estrépito.Lembrou-se, então, que de sua casa era possível avistar ao longe osmovimentos do Gólgota, procurando um ângulo de janela, de ondeconseguisse contemplar os penosos sacrifícios do Mestre de Nazaré.Bastou buscasse fazê-lo, para que enxergasse nas eminências do monte ogrande ajuntamento de povo, enquanto levantavam as três cruzesfamosas, daquele dia inesquecível.A colina era estéril, sem beleza, e através da distância podiam seusolhos lobrigar os caminhos poeirentos e a paisagem desolada e árida, sobum sol causticante.
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...Lívia orava com toda a intensidade emotiva do seu espírito,dominada por angustiosos pensamentos.À sua visão espiritual, surgiram ainda os quadros suaves eencantadores do "mar" da Galileia, conhecendo que à memória lhe revinhaaquele crepúsculo inolvidável, quando, entre criaturas humildes esofredoras, aguardava o doce momento de ouvir a confortadora palavra doMessias, pela primeira vez. Via ainda a tosca barca de Simão, encostando-se às flores mimosas das margens, enquanto a renda branca das espumaslambia os seixos claros da praia... Jesus ali estava, junto da multidão dosdesesperados e desiludidos, com seus grandes olhos ternos e profundos...Todavia, aquela cruz que se levantava, no monte da Caveira, trazia-lhe o coração em amargosas cismas.Depois de orar e meditar longamente, examinou de longe os trêsmadeiros, presumindo escutar o vozeio da multidão criminosa, que seacotovelava junto à cruz do Mestre, em terríveis impropérios.De repente, sentiu-se tocada por uma onda de consolaçõesindefiníveis. Figurava-se-lhe que o ar sufocante de Jerusalém se haviapovoado de vibrações melodiosas e intraduzíveis. Extasiada, observou, naretina espiritual, que a grande cruz do Calvário estava cercada de luzesnumerosas.Ao calor invulgar daquele dia, nuvens escuras se haviamconcentrado na atmosfera, prenunciando tempestade. Em poucos minutos,toda a abóbada celeste permanecia represada de sombras espessas. Noentanto, naquele momento, Lívia notara que se havia rasgado um longocaminho entre o Céu e a Terra, por onde desciam ao Gólgota legiões deseres graciosos e alados. Concentrando-se, aos milhares, ao redor domadeiro, pareciam transformar a cruz do Mestre em fonte de claridadesperenes e radiosas.Atraída por aquele imenso foco de luz resplandecente, sentiu quesua alma desligada do corpo
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carnal se transportava ao cume do Calvário, a fim de prestar a Jesus oúltimo preito do seu devotamento. Sim! via, agora, o Messias de Nazarérodeado dos seus lúcidos mensageiros e das legiões poderosas de seusanjos. Jamais supusera vê-lo tão divinizado e tão belo, de olhos voltadospara o firmamento, como em visão de gloriosas beatitudes.Ela o contemplou, por sua vez, tocada de sua maravilhosa luz, alheiaa todos os rumores que a rodeavam, implorando-lhe fortaleza, resignação,esperança e misericórdia.Em dado instante, seu espírito sentiu-se banhado de consolaçãoindefinível. Como se estivesse empolgada pela maior emoção de sua vida.notou que o Mestre desviara levemente o olhar, pousando-o nela, numaonda de amor intraduzível e de luminosa ternura. Aqueles olhos serenos emisericordiosos, nos tormentos extremos da agonia, pareciam dizer-lhe: -"Filha, aguarda as claridades eternas do meu reino, porque, na Terra, éassim que todos nós deveremos morrer!..."Desejava responder às exortações suaves do Messias, mas seucoração estava sufocado numa onda de radiosa espiritualidade. Todavia,no íntimo, afirmou, como se estivesse falando para si mesma: - "Sim, édesse modo que deveremos morrer!... Jesus, concedei-me alento,resignação e esperança para cumprir os vossos ensinamentos, paraalcançar um dia o vosso reino de amor e de justiça!..."Lágrimas copiosas banhavam-lhe o rosto, naquela visão beatífica emaravilhosa.Nesse momento, porém, a porta abriu-se com estrépito e a vozsoturna e desesperada do marido vibrou no ar abafado, despertando-abruscamente, arrancando-a de suas visões consoladoras.- Lívia! - bradou ele, como se estivesse tocado por comoçõesdecisivas e desesperadas.
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...Públio Lentulus, regressando ao lar, encaminhou-se imediatamenteao gabinete, onde se deixou ficar por muito tempo, engolfado em atrozespensamentos. Depois de sentir o cérebro trabalhado pelas maisantagônicas resoluções, lembrou-se de que deveria suplicar a piedade dosdeuses para os seus penosos transes. Dirigiu-se ao altar doméstico onderepousavam os símbolos inanimados de suas divindades familiares, mas,enquanto Lívia alcançara o precioso conforto, aceitando no coração osensinos de Jesus com o perdão, a humildade e a prática do bem, debalde osenador procurou esclarecimento e consolo, elevando as suas oraçõesaos pés da estátua de Júpiter, impassível e orgulhoso. Debalde suplicou ainspiração de suas divindades domésticas, porque esses deuses eram atradição corporificada do imperialismo da sua raça, tradição que seconstituía de vaidade e de orgulho, de egoísmo e de ambição.Foi assim que, intoxicado pelo ciúme, procurou a esposa, sem maisdelongas, a fim de cuspir-lhe em rosto todo o desprezo da sua amarguradadesesperação.Ao chamá-la, bruscamente, observou que seus olhos semicerradosestavam cheios de lágrimas, como a contemplar alguma visão espiritualinacessível à sua observação. Jamais Lívia lhe parecera tão espiritualizadae tão bela, como naquele instante; mas o demônio da calúnia lhe fez sentir,imediatamente, que aquele pranto nada representava senão sinal deremorso e compunção ante a falta cometida, ciente, como deveria achar-sea esposa, da sua presença no palácio governamental, depreendendo-se daíque ela deveria esperar a possibilidade da sua severa punição.Arrancada ao seu êxtase pela voz vibrante do marido, a pobresenhora observou que a sua visão se desvanecera inteiramente, e que océu de Jerusalém fôra invadido por intensa escuridão, ouvindo-se osribombos formidáveis de trovões longí-
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quos, enquanto relâmpagos terríveis riscavam a atmosfera em todas asdireções.- Lívia - exclamou o senador, com voz forte e pausada, dando aentender o esforço que despendia para dominar o complexo de suasemoções -, as lágrimas de arrependimento são inúteis neste momentodoloroso dos nossos destinos, porque todos os laços de afetividadecomum, que nos uniam, estão agora rotos para sempre...- Mas, que é isso? - pôde ela dizer, revelando o pavor que taispalavras lhe produziam.- Nem mais uma palavra - revidou o senador, pálido de cólera, dentrode uma serenidade feroz e implacável -, observei, com os próprios olhos, oseu nefando delito e agora conheço a finalidade dos seus disfarceshumildes de galileia... Ouvir-me-á a senhora até ao fim, eximindo-se dequalquer justificativa, porque uma traição como a sua só poderá encontrarjusto castigo no silêncio profundo da morte.Mas, não quero matá-la. Minha formação moral não se compadececom o crime. Não porque haja piedade em minha alma, à vista do possívelarrependimento do seu coração, no tempo oportuno, mas porque tenhoainda uma filha sobre cuja fronte recairia o meu gesto de crueldade contraa sua felonia, que basta para nos tornar infelizes por toda a vida...Homem honesto e pronto a desafrontar-me de qualquer ultraje, tenhomuito amor ao meu nome e ás tradições de minha família, de modo a menão tornar um pai desnaturado e criminoso.Poderia abandoná-la para sempre, na consideração do seu ato deextrema deslealdade, porém os servos desta casa se alimentamigualmente à minha mesa, e, sem reconhecer os outros títulos que meligavam à senhora, na intimidade doméstica, vejo ainda na sua pessoa amãe de meus filhos desventurados. É por isso que, doravante, desprezo,em face das provas palpáveis da sua desonestidade,
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...neste dia nefasto do meu destino, todas as expressões morais da suapersonalidade indigna, para conservar nesta casa, tão somente, a suaexpressão de maternidade, que me habituei a respeitar nos irracionaismais humildes.Os olhos súplices da caluniada deixavam entrever os indizíveismartírios que lhe dilaceravam o coração carinhoso e sensibilíssimo.Ajoelhara-se aos pés do esposo, com humildade, enquanto lágrimasdolorosas lhe rolavam das faces pálidas.Lembrava-se Lívia, então, de Jesus nos seus intraduzíveispadecimentos. Sim... ela recordava as suas palavras e estava pronta para osacrifício. No meio de suas dores, parecia sentir ainda o gosto daquele pãode vida, abençoado por suas divinas mãos, e figurava-se lavada de todasas mundanas preocupações. A idéia do reino dos céus, onde todos osaflitos são consolados, anestesiava-lhe o coração dolorido, nas suasprimeiras reflexões a respeito da calúnia de que era vítima o seu espíritofustigado pelas provas aspérrimas.Não obstante essa atitude de serena humildade, o senadorcontinuou no auge da angústia moral:- Dei-lhe tudo que possuía de mais puro e mais sagrado nestemundo, na esperança de que correspondesse aos meus ideais maissublimes; entretanto, relegando todos os deveres que lhe competiam, nãovacilou em derramar sobre nós um punhado de lama... Preferiu, aoconvívio do meu coração, os costumes dissolutos desta época decriaturas irresponsáveis, no capítulo da família, resvalando para odesfiladeiro que conduz a mulher aos abismos do crime e da impiedade.Mas ouça bem minhas palavras que assinalam os mais terríveisdesgostos do meu coração!Nunca mais se afastará dos labores domésticos, das obrigaçõesdiárias de minha casa. Mais um ato, com que provoque as derradeirasreservas
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da minha tolerância, não deverá esperar outra providência que não seja amorte.Não me solicite as mãos honestas para um ato de tal natureza. Se astradições familiares desapareceram no âmago do seu espírito, continuamelas cada vez mais vivas em minhalma, que as deseja cultivarincessantemente no santuário de minhas recordações mais queridas. Vivacom o seu pensamento na ignomínia, mas abstenha-se de zombarpublicamente dos meus sentimentos mais sagrados, mesmo porque, apaciência e a liberdade também têm os seus limites.Saberei ressurgir desta queda em que as suas leviandades meatiraram!...De ora em diante, a senhora será nesta casa apenas uma serva,considerando a função maternal que hoje a exime da morte; mas, nãointervenha na solução de qualquer problema educativo de minha filha.Saberei conduzi-la sem o seu concurso e buscarei o filhinho perdido talvezpela sua inconsciência criminosa, até o fim de meus dias. Concentrareinos filhos a parcela imensa de amor que lhe reservara, dentro dagenerosidade da minha confiança, porquanto, doravante, não me deveprocurar com a intimidade da esposa, que não soube ser, pela suainjustificável deslealdade, mas com o respeito que uma escrava deve aosseus senhores!...Enquanto se verificava uma ligeira pausa na palavra acrimoniosa eamargurada do senador, Lívia dirigiu-lhe um olhar de angustia suprema.Desejava falar-lhe como dantes, entregando-lhe o coração sensível ecarinhoso; todavia, conhecendo-lhe o temperamento impulsivo, adivinhoua inutilidade de qualquer tentativa para justificar-se.Passadas as primeiras reflexões e ouvindo, amargurada de dor,aquela terrível insinuação acerca do desaparecimento do filhinho, deixouvagar no coração vacilações injustificáveis e numerosas. Ante aquelascalúnias que a faziam tão desditosa, chegava a pensar se as boas açõesnão seriam vistas
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...por aquele Pai de infinita bondade, que ela acreditava velar, dos céus, portodos sofredores, de conformidade com as promessas sublimes doMessias Nazareno. Não guardara ela uma conduta nobre e exemplar, comomãe dedicada e esposa carinhosa? Todo o seu coração não estava postoem tributos de esperança e de fé naquele reino de soberana justiça, que selocalizava fora da vida material? Além disso, sua ida precipitada a Pilatos,sem a audiência prévia do marido, fôra tão somente com o elevadopropósito de salvar a Jesus de Nazaré da morte infamante. Onde o socorrosobrenatural que não chegava para esclarecer a penosa situação dela emostrar tal injustiça?Lágrimas angustiosas enevoavam-lhe os olhos cansados e abatidos.Mas antes que o marido recomeçasse as acusações, viu-se de novodefronte da cruz, em pensamento.Uma brisa suave parecia amenizar as úlceras que o libelo do esposolhe abrira no coração. Uma voz, que lhe falava aos refolhos mais íntimosda consciência, lembrou-lhe ao espírito sensível que o Mestre de Nazarétambém era inocente e expirara, naquele dia, na cruz, sob os insultos dealgozes impiedosos. E ele era justo, bom e compassivo. Daqueles a quemmais havia amado, recebera a traição e o abandono na hora extrema dotestemunho e, de quantos havia servido com a sua caridade e o seu amor,tinha recebido os espinhos envenenados da mais acerba ingratidão. Ante avisão dos seus martírios infinitos, Lívia consolidou a sua fé e rogou ao PaiCelestial lhe concedesse a intrepidez necessária para vencer as provaçõesaspérrimas da vida.Suas meditações angustiosas haviam durado um momento. Umminuto apenas, após o qual, continuou Públio Lentulus com vozdesesperada:- Aguardarei mais dois dias, nas pesquisas de meu filhinhodesventurado! Decorridas estas poucas
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horas, voltarei a Cafarnaum para afrontar a passagem do tempo. . Ficareineste cenário maldito, enquanto for necessário e, quanto à senhora,recolha-se doravante em sua própria indignidade, porque, com o mesmoímpeto generoso com que lhe poupo a existência neste momento, nãovacilarei em lhe infligir a derradeira punição no momento oportuno!...E, abrindo a porta de saída, que estremecera aos ribombos dotrovão, exclamou com terrível acento:- Lívia, este momento doloroso assinala a perpétua separação dosnossos destinos. Não ouse transpor a fronteira que nos isola um do outro,para sempre, no mesmo lar e dentro da mesma vida, porque um gestodesses pode significar a sua inapelável sentença de morte.Atrás dele, fechara-se a porta com estrépito, abafado pelos rumoresda tempestade.Jerusalém estava sob um verdadeiro ciclone de destruição, que iadeixar, após sua passagem, sinal de ruína, desolação e morte.Ficando só, Lívia chorou amargamente.Enquanto a atmosfera se lavava com a chuva torrencial que descia acântaros no fragor das trovoadas, também a sua alma se despia dasilusões amargas e purificadoras.Sim... estava só e profundamente desventurada.Doravante, não poderia contar com o amparo do marido, nem com oafeto suave da filhinha, mas um anjo de serenidade velava à sua cabeceira,com a doçura das sentinelas que nunca se afastam do seu posto de amor,de redenção e de piedade. E foi esse Espírito luminoso que, fazendogotejar o bálsamo de esperança no cálice do seu coração angustiado, deu-lhe a sentir que ainda possuía muito: - o tesouro da fé, que a unia a Jesus,ao Messias da renúncia e da salvação, a esperá-la em seu reino de luz e demisericórdia.
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169XO Apóstolo da SamariaNo dia seguinte, Públio Lentulus incentivou as pesquisas dofilhinho, entre quantos peregrinavam nas festas da Páscoa, em Jerusalém,instituindo o prêmio de um Grande Sestércio (1), ou sejam dois mil equinhentos asses, para quem apresentasse aos seus servos a criançadesaparecida.Não devemos esquecer que a criada Sêmele, bem como suascompanheiras de serviço foram submetidas ao mais rigoroso inquérito,por ocasião do castigo aos servos imprevidentes, encarregados davigilância noturna em casa do senador.Públio não admitia castigos físicos às mulheres, mas, no casomisterioso do desaparecimento do filhinho, submeteu as criadas a uminterrogatório francamente impiedoso.Inútil declarar que Sêmele protestara a mais absoluta inocência,nada deixando transparecer que pudesse comprometer sua conduta.Entretanto, as três servas que mais diretamente cuidavam dopequeno, entre as quais estava__________(1) Mil sestércios.
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ela incluída, foram obrigadas a colaborar com os escravos na procura deMarcus, pelas praças e ruas de Jerusalém, embora tivessem suas horasdiárias consagradas ao descanso. Essas horas, aproveitava-as Sêmelepara visitar ou rever relações amigas, passando a maior parte do tempo nosítio onde André cultivava as suas oliveiras e vinhedos frondosos, a poucadistância da estrada para os centros principais.Nesse dia, vamos encontrá-la ai em animada palestra com o raptor esua mulher, enquanto a criança dormitava ao canto de um compartimento.- Com quê então, o senador instituiu o prêmio de um GrandeSestércio a quem lhe devolva a criancinha? - pergunta André de Gioras,admirado.- É verdade - exclamou Sêmele, pensativa. E, na realidade, trata-sede grande soma em dinheiro romano, que facilmente ninguém ganharáneste mundo.- Se não fosse o meu justo e ardente desejo de vingança - replicou oraptor com o seu malicioso sorriso -, era o caso de irmos abocanhar essarespeitável quantia. Mas, deixa estar que não precisamos de semelhantedinheiro. Nada necessitamos desses malditos patrícios!Sêmele escutava-o indiferente e quase completamente alheia àconversa; entretanto, o interlocutor não perdia de vista as característicasfisionômicas de sua cúmplice, como se tentasse descobrir no seu modosimples e humilde algum pensamento reservado.Foi assim que, no intuito de lhe sondar a atitude psicológica, disseem tom aparentemente calmo e despreocupado, como a inquirir dos seuspropósitos mais secretos:- Sêmele, quais são as últimas noticias de Benjamim?- Ora, Benjamim - respondeu ela, aludindo ao noivo - ainda não seresolveu a marcar o casa-
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...mento, em definitivo, atento às nossas inúmeras dificuldades.Como não ignora, todo o meu desejo no trabalho se resume naconsecução do nosso ideal de adquirir aquela casinha de Betânia, já suaconhecida, e tão logo venhamos a conseguir nosso intento estaremosunidos para sempre.- Ainda bem - disse André, com a atitude psicológica de quemencontrara a chave de um enigma -, com tempo haverão de conseguir todoo necessário à ventura de ambos. Da minha parte, pode ficar descansada,porque tudo farei por auxiliá-la paternalmente.- Muito grata! - exclamou a moça, reconhecida. - Agora há-de permitirque volte ao trabalho, porque as horas parecem adiantadas.- Ainda não - falou André resolutamente -, espere um momento.Quero dar-lhe a provar do nosso vinho velho, aberto hoje somente paracomemorar a circunstância feliz de nos acharmos com vida, depois domedonho temporal de ontem!E, correndo ao interior, penetrou na adega, onde tomou de uma bilhade vinho espumante e claro, deitando-o, com fartura, numa taça antiga. Emseguida, foi a um quarto contíguo, de onde trouxe um tubo pequenino,deixando cair na taça algumas gotas do conteúdo, monologando baixinho:- Ah! Sêmele, bem poderias viver, se não surgisse esse prêmiomaldito, que te condena à morte!... Benjamim... o casamento é umasituação de amargurosa pobreza. - Uma soma de mil sestércios constituitentação a que não poderia resistir o espírito mais bem intencionado emais puro... Enquanto foram as aperturas e outros castigos, estava certo,mas agora é o dinheiro e o dinheiro costuma condenar as criaturashumanas à morte!...E, misturando o tóxico violento no vinho que espumava, continuouresmungando:
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- Daqui a seis horas minha pobre amiga estará penetrando o reinodas sombras... Que fazer? Nada me resta senão desejar-lhe boa viagem! Enunca mais alguém saberá, neste mundo, que em minha casa existe umescravo com o sangue nobre dos aristocratas do Império Romano!...Em dois minutos a desventurada serva do senador ingeria satisfeitao conteúdo da taça, agradecendo a sinistra gentileza com palavrascomovidas.Da porta de sua vivenda empedrada, observou André os passosderradeiros da sua cúmplice, nas derradeiras curvas do caminho.Ninguém mais pleitearia o Grande Sestércio oferecido peladesesperação de Lentulus, porque, precisamente à noitinha, quase àsdezenove horas, Sêmele experimentou uma sensação de súbito mal-estar,recolhendo-se ao leito imediatamente.Suores abundantes e frios lavaram-lhe as faces já descoradas, ondese notava o palor característico da morte.Ana, que já havia regressado, compungida, aos afazeresdomésticos, foi chamada à pressa, a fim de ministrar-lhe os socorrosprecisos, encontrando-a, porém, no auge da aflição que assinala osmoribundos prestes a se desvencilharem do cárcere da matéria.- Ana... - exclamou a agonizante, com voz sumida -, eu morro... mastenho a... consciência... pesada... intranqüila...- Sêmele, que é isso? - replicou a outra, fundamente comovida.Confiemos em Deus, nosso Pai Celestial, e confiemos em Jesus, que aindaontem nos contemplava da cruz dos seus sofrimentos, com um olhar deinfinita piedade!- Sinto... que é... tarde... - murmurou a agonizante, nas ânsias damorte -, eu... apenas... queria... um perdão...Todavia, a voz entrecortada e rouca não pôde continuar. Um soluçomais forte abafara as últi-
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...mas palavras, enquanto o rosto se cobria de tons violáceos, como se ocoração houvesse parado instantaneamente, estringido por incontrastávelforça.Ana compreendeu que era o fim e suplicou a Jesus recebesse emseu reino misericordioso a alma da companheira, perdoando-lhe as faltasgraves que, por certo, haviam dado motivo às palavras angustiosas dosúltimos momentos.Chamado um médico ao exame cadavérico, verificou, no empirismoda sua ciência, que Sêmele expirara por deficiência do sistema cardíaco e,longe de se descobrir a verdadeira causa daquele fato inesperado, osegredo de André de Gioras se envolvia nas sombras espessas do túmulo.Ana e Lívia tiveram ensejo de trocar impressões sobre o dolorosoacontecimento, mas ambas, embora a funda impressão que lhes causavamas derradeiras palavras da morta, encaravam a sua passagem para a outravida, na conta dessas fatalidades irremediáveis.Públio Lentulus, em seguida a esse fato, apressou o regresso àvivenda de Cafarnaum, que adquirira ao antigo dono, em caráter definitivo,prevendo a possibilidade de longa permanência em tais lugares. Oregresso foi triste, jornada trabalhosa e sem esperanças.Os servos numerosos não chegaram a perceber a profundadivergência agora existente entre ele e a esposa, e foi assim que,verdadeiramente separados pelo coração, continuaram no lar a mesmatradição de respeito perante os subordinados.Depois de alguns dias de sua segunda instalação na cidadepróspera e alegre onde Jesus tantas vezes fizera soar doces e divinaspalavras, o senador preparou copioso expediente para o amigo FIamínio,bem como para outros elementos do Senado, enviando Comênio a Roma,como portador de sua inteira confiança.Odiando a Palestina, que tantas e tão amargas provações lhereservara, mas preso a ela pelo desa-
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parecimento misterioso do pequenino Marcus, o senador solicitava aFlamínio a sua intervenção particular para que seu tio Sálvio regressasse àsede dos seus serviços na Capital do Império, tentando livrar-se dapresença de Fúlvia naqueles lugares, porquanto lhe dizia o coração, naintimidade do pensamento, que aquela mulher tinha uma influência nefastano seu destino e no de sua família. Ao mesmo tempo, saturado de terrívelaversão pela personalidade de Pôncio Pilatos, punha o amigo distante apar de numerosos escândalos administrativos que ele, após o incidente daPáscoa, resolvera corrigir com o máximo de severidade. Prometia, então, aFlamínio Severus, conhecer mais de perto as necessidades da província, afim de que as autoridades romanas ficassem cientes de gravesocorrências na administração, de modo que, em tempo oportuno, fosse ogovernador removido para outro setor do Império, e prometendorelacionar, sem demora, todas as injustiças da atuação de Pilatos na vidapública, em vista das reclamações reiteradas e consecutivas que lhechegavam aos ouvidos, de todos os recantos da província.Nessas cartas particulares pedia ainda, ao amigo, as providênciasprecisas, a fim de que lhe fosse enviado um professor para a filhinha,abatendo-se, contudo, de referir-se aos dolorosos dramas da vida privada,com exceção do caso do filhinho, por ele citado nesses documentos comocausa única da sua demora indefinita, em tais lugares.Comênio partiu de Jope, com o máximo de precaução, obedecendorigorosamente às suas ordens e atingindo Roma daí a algum tempo, ondefaria chegar aquelas notícias às mãos dos seus legítimos destinatários.Em Cafarnaum, a vida corria triste e silenciosa.Públio apegara-se ao seu arquivo volumoso, aos seus processos,aos seus estudos e às suas
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...meditações, preparando os planos educativos da filha ou organizandoprojetos concernentes às suas atividades futuras, fazendo o possível parareerguer-se do abatimento moral em que mergulhara com os dolorosossucessos de Jerusalém.Quanto a Lívia, esta, conhecendo a inflexibilidade do caráterorgulhoso do marido, e sabendo que todas as circunstâncias aparentavama sua culpa, encontrara na alma dedicada da serva uma confidenteextremosa no afeto, vivendo quase permanentemente mergulhada emorações sucessivas e fervorosas. Os sofrimentos experimentadospatentearam-se-lhe no rosto, revelando profundos vestígios nos sulcos daface descorada. Os olhos, todavia, demonstrando a têmpera e o vigor dafé, clareavam-lhe as expressões fisionômicas de brilho singular, apesar doseu visível abatimento.Em Cafarnaum, os seguidores do Mestre de Nazaré organizaramimediatamente uma grande comunidade de crentes do Messias, tornando-se muitos em apóstolos abnegados de sua doutrina de renúncia, desacrifício e de redenção. Alguns pregavam, como Ele, na praça pública,enquanto outros curavam os enfermos em seu nome. Criaturas rústicashaviam sido tomadas, estranhamente, do mais alto sopro de inteligência einspiração celeste, porque ensinavam com a maior clareza as tradições deJesus, organizando-se com a palavra desses apóstolos os pródromos doEvangelho escrito, que ficaria mais tarde no mundo como a mensagem doSalvador da Terra a todas as raças, povos e nações do planeta, qualluminoso roteiro das almas para o Céu.Todos quantos se convertiam à idéia nova, confessavam na praçapública os erros da sua vida, em sinal da humildade que lhes era exigida,portas a dentro da comunidade cristã. E para que o meigo profeta deNazaré jamais fosse esquecido em seus martírios redentores no Calvário,o povo
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simples e humilde, de então, organizou o culto da cruz, crendo fosse essaa melhor homenagem à memória de Jesus Nazareno.Lívia e Ana, no seu profundo amor ao Messias, não escaparam aessa adesão natural às tradições populares. A cruz era objeto de toda asua veneração e absoluto respeito, não obstante representar. naqueletempo, o instrumento de punição para todos os criminosos e celerados.Ana continuou a freqüentar as margens do lago, onde algunsapóstolos do Senhor prosseguiam cultivando as suas lições divinas, juntodos sofredores deserdados da sorte. E era comum verem-se esses antigoscompanheiros e ouvintes do Messias, como pegureiros humildes,atravessando estradas agrestes, no mais absoluto desconforto, a fim delevarem a todos os homens as palavras consoladoras da Boa Nova. Tiposimpressionantes de homens simples e abnegados percorriam os maislongos e escabrosos caminhos, de vestes rotas e calçando alpercatasgrosseiras, pregando, porém, com perfeição e sentimento, as verdades deJesus, como se as suas frontes humildes estivessem tocadas da graçadivina. Para muitos deles, o mundo não passava da Judeia ou da Síria;mas a realidade é que as suas palavras desassombradas e serenas iampermanecer no mundo para todos os séculos.Mais de um mês decorrera sobre a Páscoa de 33, quando o senador,por uma tarde formosa e quente da Galileia, se aproximou da esposa paralhe dizer dos seus novos propósitos:- Lívia - começou ele, reservado -, tenho a comunicar-lhe quepretendo viajar algum tempo, afastando-me desta casa talvez por doismeses, em cumprimento dos meus deveres de emissário do Imperador, emcondições especiais nesta província.Como esta viagem se verificará através de pontos numerosos,porquanto tenciono estacionar um pouco em todas as cidades doitinerário, até Jerusalém, não me é possível levá-la em minha
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...companhia, deixando-a, neste caso, como guardiã de minha filha.Como sabe, nada mais existe entre nós que lhe outorgue o direito deconhecer minhas preocupações mais íntimas; todavia, renovo minhaspalavras do dia fatal do nosso rompimento afetivo. Conservada nesta casa,apenas pela sua tarefa maternal, confio-lhe durante minha ausência aguarda de Flávia, até que chegue de Roma o velho professor que pedi aFlamínio.Desejo firmemente acredite na confiança que deponho no seupropósito de regeneração, como mãe de família, e que procurerestabelecer sua idoneidade que, outrora, não lhe negaria em taiscircunstâncias, e espero, assim, se abstenha de qualquer ato indigno, quevenha a perder minha pobre filha para sempre.- Públio!... - pode ainda exclamar a esposa do senador, aflitamente,tentando aproveitar aquele rápido minuto de serenidade do marido, a fimde se defender das calúnias que lhe eram assacadas pelas maiscomplicadas circunstâncias; mas, afastando-se repentinamente, fechadona sua severidade orgulhosa, o senador não lhe deu tempo de continuar,integrando-a, cada vez mais, no conhecimento da sua amarguradasituação dentro do lar.Passada uma semana, partia ele para a sua viagem aventurosa.Animavam-no, acima de tudo, o desejo de aliviar o coração de tantospesares, a tentativa da procura do filhinho desaparecido e o objetivo decatalogar os erros e injustiças da administração de Pilatos, de modo aalijá-lo dos poderes públicos na Palestina, em tempo oportuno.Na sua resolução, todavia, pairava um erro grave, cujasconseqüências dolorosas não conseguira ou não pudera prever no seuíntimo atribulado. A circunstância de deixar esposa e filha expostas aosperigos de uma região, onde eram
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consideradas como intrusas, devia ser examinada mais detidamente pelasua visão de homem prático Além disso, ele não podia contar, nessaausência, com a dedicação vigilante de Comênio, em viagem com destinoa Roma, onde o conduziam as determinações do patrão e leal amigo.Todas essas preocupações andavam no espírito de Lívia, dotada,como mulher, de sentimento mais apurado e mais justo, no plano dasconjeturas e previsões.Foi assim, de alma aflita, que viu partir o marido, embora houvesseele recomendado a numerosos servos o máximo de vigilância nostrabalhos da casa, junto aos seus familiares.Festividades solenes foram determinadas por Herodes, emTiberíades, previamente avisado pelo senador, a respeito de sua visitapessoal àquela cidade, que representava a primeira etapa da sua longaexcursão. Todas as localidades de maior destaque constavam comopontos de parada da caravana, recebendo Públio, em todas elas, as maisexpressivas homenagens das administrações e contingentes de escolta eservos inúmeros, que lhe auxiliavam os serviços, naquela demoradaexcursão através das unidades políticas de menor importância, naPalestina.Devemos consignar, porém, que Sulpício Tarquinius se encontravajustamente em missão junto de Ântipas, quando da festiva chegada dePúblio Lentulus à grande cidade da Galileia. Procurou, todavia, não sefazer notado pelo senador, regressando no mesmo dia a Jerusalém, ondevamos encontrá-lo em conferência íntima com o governador, nestestermos:- Sabeis que o senador Lentulus - dizia Sulpício, com o prazer dequem dá uma notícia desejada e interessante - dispôs-se a efetuar longaviagem por toda a província?- Quê? - fez Pilatos grandemente surpreendido.
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...- Pois é verdade. Deixei-o em Tiberíades, de onde se dirigirá paraSebaste em breves dias, crendo mesmo, segundo o programa da viagem,que pude conhecer graças ao concurso de um amigo, que não voltará aCafarnaum nestes quarenta dias.- Que intuito terá o senador com viagem tão incômoda e sematrativo? Alguma determinação secreta da sede do Império? - inquiriuPilatos, receoso de alguma punição aos seus atos injustos naadministração política da província.Mas, após alguns segundos de meditação, como se o homemprivado sobrepujasse as cogitações do homem público, perguntou aolictor, com interesse:- E a esposa? Não o acompanhou? Teria o senador a coragem dedeixá-la só, entregue às surpresas deste pais, onde se aninham tantosmalfeitores?- Reconhecendo que teríeis interesse em tais informes - tornouSulpício, com fingida dedicação e satisfeita malícia -, busquei inteirar-medo assunto com um amigo que segue o viajante, como elemento de suaguarda pessoal, vindo a saber que a senhora Lívia ficou em Cafarnaum, nacompanhia da filha, e ali aguardará o regresso do esposo.- Sulpício - exclamou Pilatos, pensativo -, suponho não ignorasminha simpatia pela adorável criatura a que nos referimos...- Bem o sei, mesmo porque, fui eu próprio, como deveis estarlembrado, que a introduzi no vosso gabinete particular, não há muitotempo.- É verdade!- Porque não aproveitais este ensejo para uma visita pessoal aCafarnaum? - perguntou o lictor, com segundas intenções, mas sem ferirdiretamente o melindroso assunto.- Por Júpiter! - redargüiu Pilatos, satisfeito. - Tenho um convite deCusa e outros funcionários graduados de Ântipas, naquela cidade, que meautoriza a pensar nisso. Mas, a que vem a tua sugestão neste sentido?
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- Senhor - exclamou Sulpício Tarquinius, com hipócrita modéstia -,antes de tudo, trata-se da vossa alegria pessoal com a realização desseprojeto e, depois, tenho igualmente grande simpatia por uma jovem servada casa, de nome Ana. cuja beleza admirável e simples é das maissedutoras que hei visto nas mulheres nascidas em Samaria.- Que é isso? Nunca te observei apaixonado. Acho que já passaste aépoca dos arrebatamentos da mocidade. Em todo caso, isso quer dizer quenão me encontro sozinho na satisfação que me traz a idéia dessa viagemimprevista - replicou Pilatos, com visível bom humor.E, como se naquele mesmo instante houvesse elaborado todos osdetalhes do seu plano, exclamou para o lictor, que o ouvia entre satisfeitoe envaidecido:- Sulpício, ficarás aqui em Jerusalém apenas o tempo preciso ao teudescanso ligeiro e imediato, regressando, depois de amanhã, para aGalileia, onde irás diretamente a Cafarnaum avisar Cusa dos meuspropósitos de visitar a cidade e, feito isso, irás até à residência do senadorLentulus, onde avisarás sua esposa da minha decisão, em tom discreto,cientificando-a do dia previsto para a minha partida e chegada até lá.Espero que, com a atitude inconsiderada do marido, deixando-a tão só emtais regiões, venha ela pessoalmente a Cafarnaum encontrar-se comigo, demodo a distrair-se da companhia dos galileus grosseiros e ignorantes, erecordar por algumas horas os seus dias felizes da Corte, junto de minhaconversação e de minha amizade.- Muito bem - redargüiu o lictor, não cabendo em si de contente. -Vossas ordens serão rigorosamente cumpridas.Sulpício Tarquinius saiu alegre e confortado nos seus sentimentosinferiores, antegozando o instante em que se aproximaria novamente dajovem samaritana, que despertara a cobiça dos seus sentidos materiais,cobiça que não tivera tempo de
Emannuel
...manifestar quando da sua permanência no serviço pessoal de PúblioLentulus.Cumprindo as determinações recebidas, vamos encontrá-lo daí aquatro dias em Cafarnaum, onde os avisos do governador foram recebidoscom grande contentamento por parte das autoridades políticas.O mesmo, porém, não aconteceu na residência de Públio, onde suapresença foi recebida com reservas pelos empregados e escravos da casa.Ao seu chamado, apresentou-se-lhe Maximus, substituto de Comênio nachefia dos serviços usuais, mas que estava longe de possuir a sua energiae experiência.Atendido, solicitamente, pelo antigo servo, que era seu conhecidopessoal, solicitou-lhe o lictor a presença de Ana, de quem dizia ele precisarde uma entrevista pessoal para a solução de determinado assunto.O velho criado de Lentulus não hesitou em chamá-la à presença deSulpício, que a envolveu de olhares cúpidos e ardentes.A criada perguntou-lhe, entre intrigada e respeitosa, a razão da visitainesperada, ao que Tarquinius esclareceu tratar-se da necessidade de seavistar, por um momento, com Lívia, em particular, tentando ao mesmotempo colocar a pobre moça ao corrente de suas pretensõesinconfessáveis, dirigindo-lhe as propostas mais indignas e insolentes.Após alguns minutos, em que se fazia ouvir nas suas expressõesinsultuosas, em voz abafada, que Ana escutava extremamente pálida, como máximo de cuidado e paciência para evitar qualquer nota escandalosa aseu respeito, respondeu a digna serva com voz austera e valorosa:- Senhor lictor, chamarei minha senhora para atender-vos, dentro depoucos instantes. Quanto a mim, devo afirmar-vos que estais enganado,porquanto não sou a pessoa que supondes.
Emannuel
E, encaminhando-se resolutamente para o Interior, cientificou asenhora do persistente propósito de Sulpício em lhe falar pessoalmente,surpreendendo-se Lívia não só com o acontecimento inesperado, senãotambém com a expressão fisionômica da serva, presa da mais extremapalidez, depois do choque sofrido. Ana tratou de não a inteirar de pronto,do sucedido, enquanto murmurava:- Senhora, o lictor Sulpício parece apressado. Presumo que nãotendes tempo a perder.Todavia, sem se deixar empolgar pelas circunstâncias, Lívia buscouatender ao mensageiro com o máximo de sua habitual atenção.Ante a sua presença, inclinou-se o lictor com profunda reverência,dirigindo-se-lhe respeitoso, no cumprimento dos deveres que o traziam:- Senhora, venho da parte do Senhor Procurador da Judeia, que tema honra de vos comunicar a sua vinda a Cafarnaum nos primeiros dias dapróxima semana...Os olhos de Lívia brilharam de justificada indignação, enquantoinúmeras conjeturas lhe assaltaram o espírito; movimentando, porém, assuas energias, teve a precisa coragem para responder à altura dascircunstâncias:- Senhor lictor, agradeço a gentileza de vossas palavras; todavia,cumpre-me esclarecer que meu marido se encontra em viagem, nestemomento, e a nossa casa a ninguém recebe na sua ausência.E, com leve sinal, fez-lhe sentir que era tempo de se retirar, o queSulpício compreendeu, intimamente encolerizado. Despediu-se comreverências respeitosas.Surpreendido com aquela atitude, porquanto ao espírito do lictor aprevaricação de Lívia representava um fato inconteste, retirou-sesumamente desapontado, mas não sem conjeturar os acontecimentos nasua depravada malícia.
Emannuel
...Foi assim que, encontrando-se com um dos soldados de guarda àresidência, seu conhecido e amigo pessoal, observou-lhe com fingidointeresse:- Otávio, antes de uma semana talvez aqui esteja de volta e desejariaencontrar de novo, nesta casa, a jóia rara de minha felicidade e de minhasesperanças...- Que jóia é essa? - perguntou, curioso, o interpelado.- Ana...- Está bem. Fácil é o trabalho que me pedes.- Mas, ouve-me bem - exclamou o lictor, pressentindo, já, que apresa tudo faria por fugir-lhe das mãos. - Ana costuma ausentar-sefreqüentemente e, caso isso se verifique, espero que a tua amizade não mefalte com os informes necessários, no instante oportuno...- Pode contar com a minha dedicação.Acabando de ouvir o pormenor mais importante desse diálogo,voltemos ao interior, onde Lívia, de alma opressa, confia à serva amiga edevotada as conjeturas dolorosas que lhe pesavam no coração. Depois deexternar-lhe os seus justificados temores, plenamente admitidos por Anaque, por sua vez, a colocou ao corrente das insolências de Sulpício, apobre senhora desfiou à sua confidente, simples e generosa, o rosárioinfindo de suas amarguras, relatando-lhe todos os sofrimentos que lhedilaceravam a alma carinhosa e sensibilíssima, desde o primeiro dia emque a calúnia encontrara guarida no espírito orgulhoso do companheiro.As lágrimas da serva, ante a singular narrativa, eram bem o reflexo da suaalta compreensão das angústias da senhora, perdida naqueles rincõesquase selvagens, considerando-se a sua educação e a nobreza de suaorigem.Ao finalizar o penoso relato de suas desditas, a nobre Lívia acentuoucom indisfarçável amargura:
Emannuel
- Na verdade, tudo tenho feito por evitar os escândalos injustificáveise incompreensíveis. Agora, porém, sinto que a situação se agrava cada vezmais, à vista da insistência dos meus algozes e da displicência de meumarido em face dos acontecimentos, perdendo-se o meu espírito emconjeturas amargas e dolorosas.Se mando chamá-lo por um mensageiro, pondo-o ao corrente do quese passa, a fim de que nos proteja com as suas providências imediatas,talvez não compreenda a marcha dos fatos na sua intimidade, encarandoos meus receios como sintoma de culpas anteriores, ou tomando os meusescrúpulos como desejo de regeneração por faltas que não cometi, emvirtude de suas enérgicas reprimendas e penosas ameaças; se não o avisodessas ocorrências graves, do mesmo modo se produziria o escândalo,com a vinda do governador a Cafarnaum, aproveitando o ensejo da suaausência.Tomo, unicamente, a Jesus por meu juiz nesta causa dolorosa, emque as únicas testemunhas devem ser o meu coração e a minhaconsciência!...O que mais me preocupa, agora, minha boa Ana, não é tão somentea obrigação de velar por mim, que já experimentei o fel amaríssimo dadesilusão e da calúnia impiedosa. É, justamente, por minha pobre filha,porque tenho a impressão de que aqui na Palestina os malfeitores estãonos lugares onde deveriam permanecer os homens de sentimentos purose incorruptíveis...Como não ignoras, meu desventurado filhinho já se foi, arrebatadonesse turbilhão de perigos, talvez assassinado por mãos indiferentes ecriminosas... Fala-me o coração maternal que o meu desgraçado Marcusainda vive, mas onde e como? Debalde temos procurado sabê-lo, em todosos recantos, sem o mais leve sinal da sua presença ou passagem... Agora,manda a consciência que resguarde a filhinha contra as ciladastenebrosas!...
Emannuel
...- Senhora - exclamou a serva, com fulgor estranho no olhar, como sehouvera encontrado uma solução repentina e apreciável para o assunto -,o que dissestes revela o máximo bom-senso e prudência... Também euparticipo dos vossos temores e suponho que deveremos fazer tudo porsalvar a menina e a vós mesma das garras desses lobos assassinos...Porque não nos refugiarmos nalgum local de nossa inteira confiança, atéque os malditos abandonem estas paragens?!- Mas considero que seria inútil procurarmos abrigo em Cafarnaum,em tais circunstâncias.- Iríamos a outra parte.- Aonde? - indagou Lívia, com ansiedade.- Tenho um projeto - disse Ana esperançosa. - Caso assentísseis nasua plena realização, sairíamos ambas daqui, com a pequenina,refugiando-nos na própria Samaria da Judeia, em casa de Simeão, cujaidade respeitável nos resguardaria de qualquer perigo.- Mas, a Samaria - replicou Lívia, algo desalentada - fica muitodistante...- A realidade, contudo, minha senhora, é que necessitamos de umsítio dessa natureza. Concordo em que a viagem não será tão curta, maspartiríamos com urgência, alugando animais descansados, tão logorepousássemos um pouco, na passagem por Naim. Com um dia ou dois demarcha, atingiríamos o vale de Siquém, onde se ergue a velha propriedadede meu tio. Maximus seria cientificado da vossa deliberação, sem outropretexto que não seja o da necessidade de vossas decisões no momentoe, na hipótese do regresso imediato do senador, estaria o vosso esposointegrado no conhecimento direto da situação, procurando inteirar-se, porsi mesmo, quanto à vossa honestidade.- De fato, essa idéia é o recurso mais viável que nos resta - exclamouLívia mais ou menos confortada. - Além do mais, confio no Mestre, que nãonos abandonará em provas tão rudes.
Emannuel
Hoje mesmo, faremos nossos aprestos de viagem e irás à cidadeprovidenciar, não só quanto aos animais que nos devam conduzir atéNaim, como também quanto à partida de um dos teus familiares conosco,de modo a seguirmos com a maior simplicidade, sem provocar a atençãodos curiosos, mas igualmente bem acompanhadas contra os dissaboresde qualquer eventualidade.Não te preocupes com despesas, porque estou provida dosnecessários recursos financeiros.Assim foi feito.Na véspera da partida, Lívia chamou o servo que entãodesempenhava as funções de mordomo da casa, esclarecendo-o nestestermos:- Maximus, motivos imperiosos me lavam amanhã a Samaria daJudeia, onde me demorarei alguns dias, junto de minha filha. Levarei Anaem minha companhia e espero do teu esforço a mesma dedicação desempre aos teus senhores.O interpelado fez uma reverência, como quem se surpreendessecom semelhante atitude da patroa, pouco afeita aos ambientes exterioresdo lar, mas entendendo que não lhe assistia o direito de analisar as suasdecisões, aventou, respeitoso:- Senhora, espero designeis os servos que deverão acompanhar-vos.- Não, Maximus. Não quero as solenidades do costume nasexcursões dessa natureza. Irei com pessoas amigas, de Cafarnaum, epretendo viajar com muita simplicidade. Interessa-me avisar-te dos meuspropósitos, tão somente pela necessidade de redobrar os serviços devigilância na minha ausência, e considerando a possibilidade do regressoinopinado do teu amo, a quem cientificarás da minha resolução, nostermos em que me estou exprimindo.E, enquanto o criado se inclinava respeitoso, Lívia regressava aosaposentos, solucionando todos os problemas relativos à sua tranqüilidade.No dia imediato, antes da aurora, saia de Cafarnaum uma caravanahumilde. Compunham-na
Emannuel
...Lívia, a filhinha, Ana e um dos seus velhos e respeitáveis familiares, que sedirigiam pela estrada que contornava o grande lago, quase em caprichososemicírculo, acompanhando o curso das águas do Jordão a desceremsussurrantes e tranqüilas para o Mar Morto.Numa breve parada em Naim, trocaram-se os animais, seguindo osviajantes o mesmo roteiro em direção do vale de Siquém, onde, à tardinha,apearam à frente da casa empedrada de Simeão, que recebeu oshóspedes, chorando de alegria.O ancião de Samaria parecia tocado de um, a graça divina, tal omovimento notável que desenvolvera em toda a região, não obstante a suaidade avançada, espalhando os consoladores ensinamentos do profeta deNazaré.Entre oliveiras umbrosas e frondejantes, erguera uma grande cruz,pesada e tosca, colocando nas suas proximidades ampla mesa rústica, emtorno da qual se assentavam os crentes, em pobres bancos improvisados,para lhe ouvirem a palavra amiga e confortadora.Cinco dias venturosos decorreram ali para as duas mulheres, que seencontravam à vontade naquele ambiente simples.De tarde, sob as carícias da Natureza livre e sadia, no seio verde dapaisagem harmoniosa, reunia-se a assembléia humilde dos samaritanos,inclinados a aceitar os pensamentos de amor e de misericórdia sublime doMessias Nazareno.Simeão, que ali vivia sem a companheira que Deus já havia levado esem os filhos que, por sua vez, já haviam constituído família, em aldeiasdistantes, assumia a direção de todos, como patriarca venerável na suacalma senectude, relatando os fatos da vida de Jesus como se ainspiração divina o bafejasse em tais instantes, tal a profunda belezafilosófica dos comentários e das preces improvisadas com a amorosasinceridade do seu coração.
Emannuel
Quase todos os presentes, naquela mesma poesia simples da Natureza,como se estivessem ainda bebendo as palavras do Mestre junto doGerizim, choravam de comoção e deslumbramento espiritual, tocados pelasua palavra profunda e carinhosa, magnetizados pela formosura das suasevocações saturadas de ensinamentos raros, de caridade e meiguice.Nessa época, os cristãos não possuíam os evangelhos escritos, quesomente um pouco depois apareciam no mundo grafados pelos Apóstolos,razão pela qual todos os pregadores da Boa Nova colecionavam asmáximas e as lições do Mestre, de próprio punho ou com a cooperaçãodos escribas do tempo, catalogando-se, desse modo, os ensinamentos deJesus para o estudo necessário nas assembléias públicas das sinagogas.Simeão, que não possuía uma sinagoga. seguia, porém, o mesmométodo.Com a paciência que o caracterizava, escreveu tudo que sabia doMestre de Nazaré, para recordá-lo nas suas reuniões humildes edespretensiosas, prontificando-se do melhor grado a registrar todas aslições novas do acervo de lembranças dos seus companheiros, oudaqueles apóstolos anônimos do Cristianismo nascente, que, depassagem por sua velha aldeia, cruzavam a Palestina em todas asdireções.Fazia seis dias que as hóspedes se retemperavam naquele ambientecaricioso, quando o respeitável ancião, naquela tarde, em suascostumeiras evocações do Messias, se afigurava tocado de influênciasespirituais das mais excelsas.As derradeiras meias-tintas do crepúsculo entornavam na paisagemum tom de esmeraldas e topázios, eterizados sob um céu azul indefinível.No seio da assembléia heterogênea, notava-se a presença decriaturas sofredoras, de todos os matizes, que ao espírito de Lívialembravam a tarde
Emannuel
...memorável de Cafarnaum, quando ouvira o Senhor pela primeira vez.Homens esfarrapados e mulheres maltrapilhas acotovelavam-se comcrianças esquálidas, fitando, ansiosamente, o ancião que explicava,comovido, com a sua palavra simples e sincera:- Irmãos, era de ver-se a suave resignação do Senhor, no derradeiroinstante!...Olhar fixo no céu, como se já estivesse gozando a contemplação dasbeatitudes celestes, no reino de nosso Pai, vi que o Mestre perdoavacaridosamente todas as injúrias! Apenas um dos seus discípulos maisqueridos se conservava ao pé da cruz, amparando a sua mãe noangustioso transe!... Dos seus habituais seguidores, poucos estavampresentes na hora dolorosa, certamente porque nós, os que tanto oamávamos, não podíamos externar nossos sentimentos diante da turbaenfurecida, sem graves perigos para a nossa segurança pessoal. Nãoobstante, desejaríamos, todos, experimentar os mesmos padecimentos!...De vez em quando, um que outro mais atrevido de seus verdugos seaproximava do corpo chagado no martírio, dilacerando-lhe o peito com aponta das lanças impiedosas!...Uma vez por outra, o generoso ancião limpava o suor da fronte, paracontinuar com os olhos úmidos:- Notei, em dado instante, que Jesus desviara os olhos calmos elúcidos do firmamento, contemplando a multidão amotinada em criminosafúria!... Alguns soldados ébrios açoitaram-no, mais uma vez, sem que doseu peito opresso, na angústia da agonia, escapasse um único gemido!...Seus olhos suaves e misericordiosos se espraiaram, então, do monte dosacrifício para o casario da cidade maldita! Quando o vi olhandoansiosamente, com a ternura carinhosa de um pai, para quantos oinsultavam nos suplícios extremos da morte, chorei de vergonha pelasnossas impiedades e fraquezas...
Emannuel
A massa movimentava-se, então, em altercações numerosas... Gritosensurdecedores e impropérios revoltantes o cercavam na cruz, onde se lhenotava o copioso suor do instante supremo!.. Mas o Messias, como sevisualizasse profundamente os segredos dos destinos humanos, lendo nolivro do futuro, fitou de novo as Alturas, exclamando com infinita bondade:"Perdoa-lhes, meu Pai, porque não sabem o que fazem!"O velho Simeão tinha a voz embargada de lágrimas, ao evocaraquelas lembranças, enquanto a assembléia se comovia profundamentecom a narrativa.Outros irmãos da comunidade tomaram a palavra, descansando oancião dos seus esforços.Um deles, porém, contrariamente aos temas versados naquele dia,exclamou, com surpresa para todos os circunstantes:- Meus irmãos, antes de nos retirarmos, lembremos que o Messiasrepetia sempre aos seus discípulos a necessidade da vigilância e daoração, porque os lobos rondam, neste mundo, o rebanho das ovelhas!...Simeão ouviu a advertência e pôs-se em atitude de profundameditação, de olhos fitos na grande cruz que se elevava a poucos metrosdo seu banco humilde.Ao cabo de alguns minutos de espontânea concentração, tinha osolhos transbordando de lágrimas, fixos no madeiro tosco, como se no seutopo vagasse alguma visão desconhecida de quantos o observavam...Depois, encerrando as preleções da tarde, falou comovido:- Filhos, não é sem justo motivo que o nosso irmão se refere hoje aoensino da vigilância e da prece! Alguma coisa, que não sei definir, fala-meao coração que o instante do nosso testemunho está muito próximo... Vejocom a minha vista espiritual que a nossa cruz está hoje iluminada, anun-
Emannuel
...ciando, talvez, o glorioso minuto dos nossos sacrifícios... Meus pobresolhos se enchem de pranto, porque, entre as claridades do madeiro, ouçouma voz suave que me penetra os ouvidos numa entonação branda eamiga, exclamando: "Simeão, ensina ao teu rebanho a lição da renúncia eda humildade, com o exemplo da tua dedicação e do teu próprio sacrifício!Ora e vigia, porque não está longe o instante ditoso de tua entrada noReino, mas preserva as ovelhas do teu aprisco das arremetidas tenebrosasdos lobos famulentos da impiedade, soltos na Terra, ao longo de todos oscaminhos, consciente, porém, de que, se a cada um se dará segundo aspróprias obras, os maus terão, igualmente, seu dia de lição e castigo, deconformidade com os próprios erros!..."O velho samaritano tinha o rosto lavado em lágrimas, mas doceserenidade irradiava do seu olhar carinhoso e compassivo, demonstrando-lhe as energias inquebrantáveis e valorosas.Foi então que, alçando as mãos emagrecidas e longas aofirmamento, onde brilhavam já as primeiras estrelas, dirigiu-se a Jesus, emprece ardente:- Senhor, perdoai nossas fraquezas e vacilações nas lutas da vidahumana, onde os nossos sentimentos são bem precários e miseráveis!...Abençoai nosso esforço de cada dia e relevai as nossas faltas, se algumde nós, que aqui nos reunimos, vem à vossa presença com o coraçãosaturado de pensamentos que não sejam os do bem e do amor que nosensinastes!... E, se chegada é a hora dos sacrifícios, auxiliai-nos com avossa misericórdia infinita, a fim de que não vacilemos em nossa fé, nosdolorosos momentos do testemunho!...A oração comovedora assinalou o fim da reunião, dispersando-se osassistentes, que regressavam, impressionados, às suas choupanashumildes e pobres.
Emannuel
O ancião, todavia, conseguiu repousar muito pouco naquela noite,tomado de preocupação por Lívia e pela sobrinha, que o haviamcientificado das graves ocorrências que as levaram a solicitar a suaproteção. Figurava-se-lhe que apelos carinhosos do mundo invisível lheenchiam o espírito de ansiedade indefinível e de singulares impressões,que lhe não era possível alijar do raciocínio para os necessários minutosde repouso.Contudo, enquanto ocorriam esses fatos no vale de Siquém,voltemos a Cafarnaum, onde. na mesma tarde, chegara o governador comgrande aparato.No burburinho das festanças numerosas, organizadas pelosprepostos de Herodes Ântipas, o primeiro pensamento do viajante ilustrenão nos pode ser olvidado.Sulpício, porém, após palestrar longamente com o seu amigo Otávio,nas proximidades da residência do senador, onde foi posto ao corrente detodos os fatos, voltou a informá-lo de que ambas as presas cobiçadashaviam fugido como aves viajoras, para os bosques da Samaria.O governador surpreendeu-se com a resistência daquela mulher, tãoacostumado estava ele às conquistas fáceis, admirando-lhe, intimamente,o nobre heroísmo e pensando que, afinal, constituía atitude injustificávelda sua parte tal obstinação no assédio, mesmo porque, não lhe faltariammulheres tentadoras e formosas, desejosas de captarem a sua estima, nocaminho da sua alta posição social na Palestina.Ao mesmo tempo que dava curso a esses pensamentos, o espíritoperverso do lictor, antegozando a trabalhosa conquista da sua vítima,murmurava-lhe ao ouvido:- Senhor governador, se consentirdes, irei a Samaria da Judeiainformar-me do assunto. Daqui ao vale de Siquém deve mediar pouco maisde trinta milhas, o que vem a ser um salto para os nossos cavalos. Levariacomigo seis soldados, bastando
Emannuel
...esses homens para manter a ordem em qualquer lugar destas paragens.- Sulpício, por mim, não vejo mais necessidade de semelhantesprovidências exclamou Pilatos, resignado.- Mas, agora - explicou o lictor, com interesse -, se não é por vós,deve ser por mim, porque me sinto escravizado a uma mulher que devopossuir de qualquer maneira.Sou eu agora quem vos pede, humildemente, a concessão dessasprovidências - acentuou ele, desesperado, no auge dos seus pensamentosimpuros.- Está bem - murmurou Pilatos, com displicência, como quem faz umfavor a servo de confiança -, concedo-te o que me pedes. Acho que o amorde um romano deve superar qualquer afeição dos escravos deste país.Podes partir, levando contigo os elementos da tua amizade, sem teesqueceres, porém. de que devemos regressar a Nazaré, de hoje a trêsdias. Não te bastarão dois dias para esse cometimento?- Mas - continuou o lictor, maliciosamente -, e se houver algumaresistência?- Para isso levas os teus homens, autorizando-te eu a tomar asiniciativas necessárias aos teus propósitos. Em qualquer missão, jamais teesqueças prestar aos patrícios os favores da nossa consideração, mas,aos que o não sejam, faze a justiça do nosso domínio e da nossa forçaimplacáveis.Na mesma noite, Sulpício Tarquinius escolheu os homens de maisconfiança, e, pela madrugada, sete cavaleiros audaciosos puseram-se acaminho, trocando os ginetes fogosos. nas paradas mais importantes, emdemanda de Samaria.O lictor encaminhava-se para a sua aventura, como quem segue parao desconhecido, com o propósito firme de atingir os fins sem cogitar dosmeios. Turbilhonavam-lhe no cérebro pensamentos
Emannuel
condenáveis, afogando o coração inquieto e louco numa onda de anseioscriminosos e indefiníveis.Voltando, todavia, nossa atenção para a casa humilde do vale,vamos encontrar Simeão em grandes atividades, naquela manhãinolvidável de sua vida.Após o almoço frugal, organizadas todas as suas anotações epergaminhos, depois de mais de uma hora de meditação e precesfervorosas, e quando o Sol já declinava, reuniu as hóspedas, falando-lhesgravemente:- Filhas, a visão de meus pobres olhos, em nossas preces de ontem,representa uma séria advertência para o meu coração. Ainda esta noite ehoje, durante o dia, tenho ouvido apelos suaves que me chamam e, semexplicar a justa razão deles, tenho o íntimo saturado de branda serenidade,na suposição de que não deve tardar muito a minha ida para o Reino...Algo, porém, me fala ao espírito que ainda não soou a hora da vossapartida e, considerando o ensinamento do nosso Mestre de bondade emisericórdia, sobre os lobos e as ovelhas, devo resguardar-vos dequalquer perigo. É por isso que vos peço acompanhar-me.Assim dizendo, o respeitável ancião pôs-se de pé e, caminhandopara o seu casebre, deslocou blocos de pedra duma abertura na paredeempedrada, exclamando imperativamente, na sua serena simplicidade:- Entremos.- Mas, meu tio - obtemperou Ana, com certa estranheza -, serãonecessárias tais providências?- Filha, nunca discutas o conselho daqueles que envelheceram notrabalho e no sofrimento. O dia de hoje é decisivo e Jesus não me poderiaenganar o coração.- Oh! mas será possível, então, que o Mestre nos vá privar de vossapresença carinhosa e consoladora? - exclamou a pobre rapariga banhadaem
Emannuel
...pranto, enquanto Lívia os acompanhava sensibilizada, trazendo pela mão afilha estremecida.- Sim, para nós - revidou Simeão, com serena coragem, mirando oazul do céu -, deve existir uma só vontade, que é a de Deus. Cumpram-se,pois, nos escravos os desígnios do Senhor.Neste comenos, penetraram os quatro numa galeria que, à distânciade poucos metros, ia dar num modesto refúgio talhado em pedras rústicas,afirmando o ancião em tom solene:- Ha mais de vinte anos não abro este subterrâneo a pessoaalguma... Recordações sagradas de minha esposa fizeram-me encerrá-lopara sempre, como túmulo de minhas ilusões mais queridas; mas, hoje demanhã, o reabri resolutamente, retirei os tropeços do caminho, coloqueiaqui os apetrechos necessários ao descanso de um dia, pensando navossa segurança até à noite. Este abrigo está oculto nas rochas que, juntodas oliveiras, fazem o ornamento do nosso recanto de orações e, nãoobstante parecer abafado, o ambiente recebe o ar puro e fresco do vale,como a nossa própria casa.Ficai aqui tranqüilas. Alguma coisa me diz ao coração que estamosatravessando horas decisivas. Trouxe o alimento preciso para as três,durante as horas da tarde, e caso eu não volte até à noitinha, já sabemcomo devem mover a porta empedrada que dá para meu quarto. Daqui,ouvem-se os rumores das cercanias, o que vos possibilitará acompreensão de qualquer perigo.- E mais ninguém conhece este refúgio? -perguntou Ana, ansiosa.- Ninguém, a não ser Deus e os meus filhos ausentes.Lívia, profundamente comovida, ergueu então a voz do seu sinceroagradecimento:- Simeão - disse ela -, eu, que conheço a têmpera do inimigo,justifico os vossos temores. Jamais esquecerei vosso gesto paternal,salvando-me do verdugo impiedoso e implacável.
Emannuel
- Senhora, não agradeçais a mim, que nada valho. Agradeçamos aJesus os seus desígnios preciosos, no momento amargo das nossasprovas...Arrancando uma pequena cruz de madeira tosca das dobras datúnica humilde, entregou-a à esposa do senador, exclamando com vozserena:- Só Deus conhece o minuto que se aproxima, e esta hora podeassinalar os derradeiros momentos do nosso convívio na Terra. Se assimfor, guardai esta cruz como recordação de um servo humilde... Ela traduz agratidão do meu espírito sincero...Como Lívia e Ana começassem a chorar com as suas palavrascomovedoras, continuou o ancião com voz pausada:- Não choreis, se este minuto constitui o instante supremo! Se Jesusnos chama ao seu trabalho, uns antes dos outros, lembremo-nos de que,um dia, nos reuniremos todos nas luzes cariciosas do seu reino de amor emisericórdia, onde todos os aflitos hão-de ser consolados..E, como se o seu espírito estivesse na plena contemplação de outrasesferas, cujas claridades o enchessem de intuições divinatórias,prosseguiu, dirigindo-se à Lívia, comovidamente:- Estejamos confiantes na Providência Divina! Caso o meutestemunho esteja previsto para breves horas, confio-vos a minha pobreAna, como vos entregaria a minha recordação mais querida!... Depois queabracei as lições do Messias, todos os filhos do meu sangue medesampararam, sem me compreenderem os propósitos mais santos docoração... Ana, porém, apesar da sua juventude, entendeu, comigo, o doceCrucificado de Jerusalém!...- Quanto a ti, Ana - disse pousando a destra na fronte da sobrinha -,ama a tua patroa como se fosses a mais humilde das suas escravas!Nesse instante, porém, um ruído mais forte penetrou no recinto,como se um barulho incom-
Emannuel
...preensível proviesse das rochas, parecendo mais um tropel de numerososcavalos que se iam aproximando.O ancião fez um gesto de despedida, enquanto Lívia e Ana seajoelharam diante da sua figura austera e carinhosa; ambas, entrelágrimas, tomaram-lhe as mãos encarquilhadas, que cobriam de beijosafetuosos.Num relance, Simeão transpôs a pequena galeria, reajustando aspedras na parede com o máximo cuidado.Em poucos minutos, abria as portas da casa humilde e generosa aSulpício Tarquinius e seus companheiros, compreendendo, afinal, que asadvertências de Jesus, no silêncio de suas orações fervorosas, nãohaviam falhado.O lictor dirigiu-lhe a palavra sem qualquer cerimônia, fazendo opossível por eliminar a impressão que lhe causava a majestosa aparênciado ancião, com os seus olhos altivos e serenos e as longas barbasencanecidas.- Meu velho - exclamou desabridamente -, por intermédio de teusconhecidos já sei que te chamas Simeão, e igualmente que hospedas aquiuma nobre senhora de Cafarnaum, com a sua serva de confiança. Venhoda parte das mais altas autoridades para falar particularmente com essassenhoras, na maior intimidade possível..Enganais-vos, lictor - murmurou Simeão, com humildade. - De fato, aesposa do senador Lentulus passou por estas paragens; todavia, apenaspela circunstância de se fazer acompanhar por uma de minhas sobrinhas-netas, deu-me a honra de repousar nesta casa algumas horas.- Mas deves saber onde se encontram neste momento.- Não posso dizê-lo.- Ignoras, porventura?- Sempre entendi - replicou o ancião corajosamente - que devoignorar todas as coisas que
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venham a ser conhecidas para o mal de meus semelhantes.- Isso é outra coisa - redargüiu Sulpício, encolerizado, como ummentiroso de quem se descobrissem os pensamentos mais secretos. -Quer dizer, então, que me ocultas o paradeiro dessas mulheres, porsimples caprichos da tua velhice caduca?- Não é isso. Conhecendo que no mundo somos todos irmãos, sinto-me no dever de amparar os mais fracos contra a perversidade dos maisfortes.- Mas, eu não as procuro para fazer mal algum e chamo-te a atençãopara estas insinuações insultuosas, que merecem a punição da justiça.- Lictor - revidou Simeão, com grande serenidade -, se podeisenganar os homens, não enganais a Deus com os vossos sentimentosinconfessáveis e impuros. Sei dos propósitos que vos trazem a estes sítiose lamento a vossa impulsividade criminosa...Vossa consciência estáobscurecida por pensamentos delituosos e impuros, mas todo momento éum ensejo de redenção, que Deus nos concede na Sua infinita bondade...Voltai atrás da insídia que vos trouxe e ide noutros caminhos, porqueassim como o homem deve salvar-se pelo bem que pratica, pode tambémmorrer pelo fogo devastador das paixões que o arrastam aos crimes maishediondos...- Velho infame... - exclamou Sulpício Tarquinius, rubro de cólera,enquanto os soldados observavam, admirados, a serena coragem dovaloroso ancião da Samaria -, bem me disseram teus vizinhos, ao meinformarem a teu respeito, que és o maior feiticeiro destas paragens!...Adivinho maldito, como ousas afrontar deste modo os mandatáriosdo Império, quando te posso pulverizar com uma simples palavra? Comque direito escarneces do poder?
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...- Com o direito das verdades de Deus, que nos mandam amar opróximo como a nós mesmos... Se sois prepostos de um Império que outralei não possui além da violência impiedosa na execução de todos oscrimes, sinto que estou subordinado a um poder mais soberano do que ovosso, cheio de misericórdia e bondade! Esse poder e esse Império são deDeus, cuja justiça misericordiosa está acima dos homens e das nações!...Compreendendo-lhe a coragem e a energia moral inquebrantáveis, olictor, embora fremente de ódio, revidou em tom fingido:- Está bem, mas eu não vim aqui para conhecer as tuas bruxarias e oteu fanatismo religioso. De uma vez por todas: queres ou não prestar-meas informações precisas, acerca das tuas hóspedas?- Não posso - replicou Simeão corajosamente -, minha palavra é umasó.- Então, prendei-o! - disse, dirigindo-se aos seus auxiliares, pálido decólera ao se ver derrotado naquele duelo de palavras.O velho cristão da Samaria foi submetido aos primeiros vexames,por parte dos soldados, entregando-se, porém, sem a mínima resistência.Aos primeiros golpes de espada, exclamou Sulpíciosarcasticamente:- Então, onde se encontram as forças do teu Deus, que te nãodefende? Seu Império é assim tão precário? Porque não te socorrem ospoderes celestiais, eliminando-nos com a morte, em teu beneficio?Uma gargalhada geral seguiu-se a essas palavras, partida dossoldados que acompanhavam, gostosamente, os ímpetos criminosos doseu chefe.Simeão, todavia, tinha as energias preparadas para o testemunho dasua fé ardente e sincera. De mãos amarradas, pôde ainda revidar, com aserenidade habitual:- Lictor, ainda que eu fosse um homem poderoso como o teu César,nunca ergueria a voz para ordenar a morte de quem quer que fosse, à
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face da Terra. Sou dos que negam o próprio direito da chamada legítimadefesa, porque está escrito na Lei que "Não Matarás", sem nenhumacláusula que autorize o homem a eliminar o seu irmão, nessa ou naquelacircunstância... Toda a nossa defesa, neste mundo, está em Deus, porquesó ele é o Criador de toda a vida e somente ele pode pôr e dispor denossos destinos.Sulpício experimentou o apogeu do seu ódio em face daquelacoragem indomável e esclarecida e, avançando para um dos prepostos,exclamou enraivecido:- Mércio, toma à tua conta este velho imbecil e feiticeiro. Guarda-ocom atenção e não te descuides. Caso tente fugir, mete-lhe o chanfalho!O venerável ancião, consciente de que atravessava as suas horassupremas, encarou o agressor com heróica humildade.Sulpício e os companheiros invadiram-lhe a casa e o quintal,expulsando-lhe uma velha serva, a palavrões e pedradas. No seu quartoencontraram as anotações evangélicas e os pergaminhos amarelecidos,além de pequenas lembranças que guardava em memória dos seus afetosmais queridos.Todos os objetos de suas recordações mais sagradas foram trazidosà sua presença, onde foram quebrados sem piedade. Perante seus olhos,serenos e bons, dilaceraram-se túnicas e papiros antigos, entre sarcasmose ironias revoltantes.Terminada a devassa, o lictor, de mãos nas costas, examinando,intimamente, a melhor maneira de arrancar-lhe a desejada confissão sobreo paradeiro de suas vítimas, andou pelas adjacências mais de duas horas,voltando à mesma sala, onde o interpelou novamente.- Simeão - disse ele, com interesse -, satisfaze os meus desejos e teconcederei a liberdade.
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...- Por esse preço, toda a liberdade me seria penosa. Deve preferir-sea morte a transigir com o mal - respondeu o ancião com a mesmacoragem.Sulpício Tarquinius rilhou os dentes de fúria, ao mesmo tempo quegritava possesso:- Miserável! saberei arrancar-te a confissão necessária.Isso dizendo, encarou fixamente o enorme cruzeiro que se levantavaa poucos metros da porta e, como se houvesse escolhido o melhorinstrumento de martírio para arrancar-lhe a revelação desejada, dirigiu-seaos soldados em voz soturna:- Amarremo-lo à cruz, como o Mestre das suas feitiçarias.Recordando-se dos grandes momentos do Calvário, o anciãodeixou-se levar sem nenhuma relutância, agradecendo, intimamente, aJesus pelo seu aviso providencial, a tempo de salvar das mãos do inimigoaquelas que considerava como filhas muito amadas.Num ápice os soldados o amarraram na base do pesado madeiro,sem que a vítima demonstrasse um único gesto de resistência.Avizinhava-se o crepúsculo, e Simeão recordou que, horas antes,sofria o Senhor com mais intensidade. Em prece ardente, suplicou ao PaiCelestial ânimo e resignação para o angustioso transe. Lembrou-se dosfilhos ausentes, rogando a Jesus que os acolhesse no manto de suainfinita misericórdia. Foi nesse ínterim que, amarrado à base da cruz pelosbraços, pelo tronco e pelas pernas, viu que se aproximavam alguns doscompanheiros de suas preces habituais, para as reuniões do crepúsculo,os quais foram logo detidos pelos soldados e pelo chefe implacável.Inquiridos, quanto ao ancião que ali se encontrava, com o dorsoseminu para os tormentos do açoite, todos, sem exceção de um só,alegaram não conhecê-lo.
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Mais que os ataques dos impiedosos romanos, semelhanteingratidão doeu-lhe fundo, no espírito generoso e sincero, como seenvenenado espinho lhe penetrasse o coração.Todavia, recompôs imediatamente as suas energias espirituais e,contemplando o Alto, murmurou baixinho, numa prece ansiosa e ardente:- Também vós, Senhor, fostes abandonado!... Éreis o Cordeiro deDeus, inocente e puro, e sofrestes as dores mais amargas,experimentando o fel das traições mais penosas!... Não seja pois o vossoservo, mísero e pecador, que renegue os martírios purificadores dotestemunho!...A essa hora, já o recinto se encontrava repleto de pessoas que, deconformidade com as determinações de Sulpício, deveriam permanecernos bancos grosseiros, dispostos em semicírculo, de modo a assistirem àcena selvagem, a titulo de escarmento para quantos viessem adesobedecer à justiça do Império.O primeiro soldado, à ordem do chefe, iniciou o flagício. Todavia, daterceira vez que as suas mãos brandiam as extremas tiras de couro, naexecranda tortura, sem que o ancião deixasse escapar o mais ligeirogemido, parou, subitamente, exclamando para Tarquinius em voz baixa eem tom discreto:- Senhor lictor, no alto do madeiro há uma luz que paralisa os meusesforços.Encolerizado, mandou Sulpício que um novo elemento osubstituísse, mas o mesmo se repetiu com os seus algozes chamados aotrabalho sinistro.Foi então que, desesperado de ódio incompreensível, tomouSulpício dos açoites, brandindo-os ele mesmo no corpo da vítima, que secontorcia em sofrimentos angustiosos.Simeão, banhado de suor e sangue, sentia o estalar dos ossosenvelhecidos, que se quebravam aos pedaços, cada vez que o açoite lhelambia as carnes enfraquecidas. Seus lábios murmuravam
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...preces fervorosas, apelos a Jesus para que os tormentos não seprolongassem ao infinito. Todos os presentes, não obstante o terror queos levara à defecção para com o velho discípulo de Jesus, viam-lhe, comlágrimas, os inomináveis padecimentos.Em dado instante, a fronte pendeu, quase desfalecida, prenunciandoo fim de toda a resistência orgânica, em face do martírio.Sulpício Tarquinius parou, então, por um minuto, a sua obra nefandae, aproximando-se do ancião, falou-lhe ao ouvido, com ansiedade:- Confessas agora?Mas o velho samaritano, temperado nas lutas terrestres, por mais desetenta anos de sofrimento, exclamou, exausto, em voz sumida:- O... cristão... deve... morrer... com Jesus... pelo... bem... e... pela...verdade...- Morre, então, miserável!... - gritou Sulpício, em voz estentórica; e,tomando da espada, enterrou-lhe a lâmina no peito deprimido.Viu-se o sangue jorrar em borbotões vermelhos e abundantes.Nessa hora, cansado já do martírio, o ancião viu sem temor o atosupremo que poria termo aos seus padecimentos. Experimentou asensação de um instrumento estranho que lhe abria o peito dolorido,sufocado por mortal angústia.Num relance, porém, lobrigou duas mãos de neve, translúcidas, quepareciam alisar-lhe carinhosamente os cabelos embranquecidos.Notou que o cenário se havia transformado, enquanto fecharaligeiramente os olhos, no momento doloroso.O céu não era o mesmo, nem mais à sua frente via traidores everdugos. O ambiente estava saturado de luz branda e reconfortante,enquanto aos seus ouvidos chegavam os ecos suaves de uma cavatina docéu, entoada, talvez, por artistas invisíveis. Ouvia cânticos esparsos,exaltando as dores de
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todos os desventurados, de todos os aflitos do mundo, divisando,maravilhado, o sorriso acolhedor de entidades lúcidas e formosas.Afigurava-se-lhe reconhecer a paisagem que o recebia. Supunha-setransportado aos deliciosos recantos de Cafarnaum, nos instantes suavesem que se preparava para receber a bênção do Messias, jurando haveraportado, por processo misterioso, numa Galileia de flores mais ricas e defirmamento mais belo. Havia aves de luz, como lírios alados do paraíso,cantando nas árvores fartas e frondosas, que deviam ser as do édencelestial.Buscou senhorear-se das suas emoções nas claridades dessa TerraPrometida, que, a seus olhos, deveria ser o país encantado do "Reino doSenhor".Por um momento, lembrou-se do orbe terrestre, das suas últimaspreocupações e das suas dores. Uma sensação de cansaço dominou-lhe,então, o espírito abatido, mas uma voz que seus ouvidos reconheceriam,entre milhares de outras vozes, falou-lhe brandamente ao coração:- Simeão, chegado é o tempo do repouso!... Descansa agora dasmágoas e das dores, porque chegaste ao meu Reino, onde desfrutaráseternamente da misericórdia infinita do Nosso Pai!...Pareceu-lhe, afinal, que alguém o tomara de encontro ao peito, como máximo de cuidado e carinho.Um bálsamo suave adormentou o seu espírito exausto eamargurado. O velho servo de Jesus fechou, então, os olhos,placidamente, acariciado por uma entidade angélica que pousou, de leve,as mãos translúcidas sobre o seu coração desfalecido.Voltando, porém, ao doloroso espetáculo, vamos encontrar, junto àcasa do ancião de Samaria, regular massa de povo que assistia, transidade pavor, à cena tenebrosa.Amarrado ao madeiro, o cadáver do velho Simeão golfava sanguepela enorme ferida aberta no coração. A fronte pendida para sempre, comose
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...reclamasse o repouso da terra generosa, suas barbas veneráveis setingiam de rubro, aos salpicos de sangue das vergastadas, porqueSulpício, embora sabendo que o golpe de espada era o detalhe final domonstruoso drama, continuava a açoitar o cadáver colado à cruz infamantedo martírio.Dir-se-ia que as forças desencadeadas da Treva se haviamapoderado completamente do espírito do lictor, que, tomado de fúriaepiléptica, intraduzível, vergastava o cadáver sem piedade, numa torrentede impropérios, para impressionar a massa popular que o observavaestarrecida de assombro.- Vede - gritava ele furiosamente -, vede como devem morrer ossamaritanos velhacos e os feiticeiros assassinos!... Velho miserável!...Leva para os infernos mais esta lembrança!...E o açoite caía, impiedoso, sobre os despojos destroçados davitima, reduzidos agora a uma pasta sangrenta.Nisso, porém, fosse pela pouca profundidade da base da cruz, quese abalara nos movimentos reiterados e violentos do suplício, ou pelapunição das forças poderosas do mundo invisível, viu-se que o enormemadeiro tombava ao solo na vertigem de um relâmpago.Debalde tentou o lictor eximir-se à morte horrível, examinando asituação por um milésimo de minuto, porque o tope da cruz lhe abateu acabeça de um só golpe, inutilizando-lhe o primeiro gesto de fuga. Atiradoao chão com uma rapidez espantosa, Sulpício Tarquinius não teve tempode dar um gemido. Pela base do crânio, esmigalhado, escorria a massaencefálica misturada de sangue.Num átimo, todos acorreram ao corpo abatido do lobo, trucidadodepois do sacrifício da ovelha. Um dos soldados examinou-lhe,detidamente, o peito, onde o coração ainda pulsava nas derradeirasexpressões de automatismo.A boca do verdugo estava aberta, não mais para a gritariablasfematória, mas da garganta
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avermelhada descia uma espumarada de saliva e sangue, figurando a babarepelente e ignominiosa de um monstro. Seus olhos estavamdesmesuradamente abertos, como se fitassem, eternamente, nosespasmos do terror, uma interminável falange de fantasmas tenebrosos...Impressionados com o acidente imprevisto, no qual adivinhavam ainfluência da misteriosa luz que haviam lobrigado no topo do cruzeiro, ossoldados ignoravam como providenciar naquela conjuntura, igualmenteconfundidos na onda de espanto e surpresa geral dos primeirosmomentos.Foi nesse instante que assomou à porta a figura nobre de Lívia,pálida de amarga perplexidade.Ela e Ana, no interior da cava onde se haviam refugiado,pressentiram o perigo, permanecendo ambas em fervorosas preces,implorando a piedade de Jesus naquelas horas angustiosas.A seus ouvidos chegavam os rumores imprecisos das discussões edo vozerio do povo em altercações ruidosas, nos minutos do incidente,encarado, por quantos a ele assistiram, como castigo do céu.Ambas, aflitas e ansiosas, considerando o adiantado da hora,deliberaram sair, fossem quais fossem as conseqüências da suaresolução.Chegando à porta e observando o espetáculo horrendo do cadáverde Simeão reduzido quase a uma pasta informe, sob a base da cruz, evendo o corpo de Sulpício estendido à distância de poucos passos, com abase do crânio esfacelada, experimentaram, naturalmente, um pavorindefinível.O paroxismo das emoções, contudo, poucos minutos durou.Enquanto a serva se desfazia em soluços, Lívia, com a energia quelhe caracterizava o espírito e a fé que lhe clarificava o coração,compreendeu de relance o que se havia passado e, entendendo que asituação exigia a força de uma vontade poderosa para que o equilíbriogeral se restabelecesse, excla-
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...mou para a serva, entregando-lhe a filha resolutamente:- Ana, peço-te o máximo de coragem neste angustioso transe,mesmo porque, cumpre-nos lembrar que a bondade de Jesus nospreparou para suportar, dignamente, mais esta prova aspérrima edolorosa! Guarda Flávia contigo, enquanto vou providenciar para que atranqüilidade se restabeleça!.A passos rápidos, avançou para a turba que se ia aquietando à suapassagem.Aquela mulher, de beleza nobre e graciosa, deixava transparecer noolhar uma chama de profunda indignação e amargura. Seu aspecto severodenunciava a presença de um anjo vingador, surgido entre aquelascriaturas ignorantes e humildes, no momento oportuno.Aproximando-se da cruz, onde jaziam os dois cadáveres, cercadospela confusão, implorou de Jesus a coragem e fortaleza necessárias paradominar o nervosismo e a inquietação de todos os que a rodeavam. Sentiuque força sobre-humana se apossara da sua alma no momento preciso.Por um minuto, pensou no esposo, nas convenções sociais, no escândalorumoroso daqueles acontecimentos, mas o sacrifício e a morte gloriosa deSimeão eram para ela o exemplo mais confortador e mais santo. Tudoolvidou para se lembrar de que Jesus pairava acima de todas as coisastransitórias da Terra, como o mais alto símbolo de verdade e de amor, paraa felicidade imorredoura de toda a vida.Um dos soldados, tomado de veneração e conhecendo perto dequem seus olhos se encontravam, acercou-se-lhe, exclamando com omáximo respeito:- Senhora, cumpre-me apresentar-vos nossos nomes, a fim de quepossais utilizar-nos para o que julgardes necessário.- Soldados - exclamou resoluta -, não precisais declinar nomes.Agradeço a vossa dedicação espontânea, que poderia ter sido, minutosantes,